Luiz Carlos Azedo: Novo arcabouço fiscal blindará política de Haddad

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Ministro da Fazenda melhorou muito seu relacionamento com os agentes econômicos, apesar do contencioso com o presidente do BC

Um dos fatores de sucesso do Plano Real foi a blindagem da política econômica, especialmente do então ministro da Fazenda, Pedro Malan. Quem trombou com ele, acabou defenestrado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Foi o que aconteceu com Clóvis Carvalho, que havia deixado a Casa Civil para assumir o Ministério do Desenvolvimento. Durou três meses no cargo.

Vale revisitar o episódio. Carvalho havia cobrado mais ousadia da equipe econômica e criticara Pedro Malan por “excesso de cautela”. O ministro da Fazenda não gostou e exigiu uma atitude mais firme em relação ao “fogo amigo” no governo. FHC pretendia resolver o problema com uma boa conversa. Logo se deu conta de que corria o risco de ficar sem Malan e, mesmo que isso não acontecesse, sua autoridade sairia arranhada.

A política econômica estava blindada pelos aliados do chefe do Executivo no Congresso. O então presidente do PFL, Jorge Bornhausen (SC), defendia a rápida substituição de Carvalho. O presidente do então PMDB, Jader Barbalho (PA), também apoiava a demissão. O então ministro Aloysio Nunes Ferreira (Secretaria-Geral da Presidência) reforçou a blindagem ao afirmar que o substituto seria alguém que somasse com Malan. O nome escolhido era o de Alcides Tápias (Camargo Correia).

Carvalho ainda tentou evitar sua saída do governo, refugou o pedido de demissão na conversa com Pedro Parente, que havia assumido a Casa Civil em seu lugar e, de mando, sugeriu que pedisse para sair: “Não aceito falar com intermediários”. Chamado ao Palácio do Planalto, a conversa com FHC foi telegráfica: “Você sabe que estou no governo por sua causa. Se você entender que, para o projeto continuar bem, eu deveria sair dele, coloco meu cargo à disposição”, disse o ministro. “Eu preciso do cargo”, disse o presidente da República.

O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, melhorou muito seu relacionamento com os agentes econômicos, apesar do contencioso com o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, por causa da taxa de juros de 13,75% (Selic). Mas o “fogo amigo” no governo continua. Só agora caiu a ficha de que a proposta de arcabouço fiscal apresentada pela equipe econômica deve ser defendida em vez de atacada pela bancada do PT para o Congresso não endurecer ainda mais as suas regras. O presidente de Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e os dois grandes blocos formados na Casa se movimentam para engessar a política fiscal.

Contingenciamento

O relator do projeto, deputado Cláudio Cajado (PP-BA), trabalha um substitutivo que estabelece uma limitação maior do que o previsto por Haddad para certas despesas e endurece a punição para o não cumprimento das metas do saldo primário, a diferença entre receita e despesa, desconsiderados os juros. Outra proposta é o contingenciamento das despesas para que não extrapolem o teto de gastos. Contingenciar é um verbo obsceno para o PT. Principalmente se for reajustes salariais de servidores e injeção de dinheiro nas estatais. Em contrapartida, o novo arcabouço limitaria o teto de pagamento de precatórios pelo Tesouro.

Existe um compromisso entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara para aprovar o projeto de arcabouço fiscal sem mudar sua essencia. Mas o jogo ainda não terminou. Os agentes econômicos pressionam para que as regras fiscais sejam mais rígidas, os partidos de oposição jogam pesado para reduzir a flexibilidade do arcabouço, na expetativa de que isso imponha limites aos programas sociais do governo. Os deputados estão mais preocupados com suas emendas do que com as políticas públicas.

A margem do governo para relançar ao antigo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com novos investimentos, com a liberação das emendas do antigo “orçamento secreto” se reduziu. Quando presidente da Câmara, Arthur Lira, afirma que o Congresso não aceitará retrocessos, está mandando um recado de que a legislação aprovada em seu mandato anterior deve ser mantida. Estão nesse escopo a marco do saneamento e a privatização da Eletrobras. No primeiro caso, o governo tenta mitigar a derrota no Senado; no segundo, como sabe que não passa pela Câmara, recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas há uma grande interrogação ainda. O “fogo amigo” da bancada petista contra a política econômica de Haddad está em certa sintonia com as declarações do presidente Lula. Até agora, apesar disso, Haddad tem conseguido avançar. Tem o apoio do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o vice-presidente Geraldo Alckmin, e da ministra do Planejamento, Simone Tebet. A equipe econômica está unida, quando nada porque o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, um desenvolvimentista, está em silêncio obsequioso. (Correio Braziliense – 12/05/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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