César Felício: Escola não é banco e nem aeroporto

O enfrentamento aos psicopatas está nas redes sociais, nas quais funciona um ecossistema da radicalização que já está bastante mapeado

Um verdadeiro aluvião de mensagens sobre possíveis ataques a escolas inundou as redes sociais nessa quarta-feira, com uma força que surpreendeu os especialistas atentos ao tema e que monitoram o que se passa no meio digital. Vive-se, no momento em que esta coluna é escrita, um clima de pânico nas famílias com filho em idade escolar, com todo a energia desestruturadora que esta sensação desperta.

Parte do pânico é o chamado “swatting”: comunicação falsa de crimes pelo puro deleite de sobrecarregar sistemas de emergência e atrapalhar investigações. Também existe malandragem, segundo apontou a pesquisadora em extremismo digital Michele Prado: como o algoritmo de certas redes sociais monetiza pelo total de visualizações, há quem se preste a inventar ameaças inexistentes para faturar mais. Mas o próprio aumento de ataques fala por si sobre o agravamento do problema.

O governo federal foi na direção certa ao mirar nas redes sociais como forma de tentar estancar este processo, porque vai na raiz do problema. A estratégia de governos estaduais como os de Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo de criar esquemas ostensivos de segurança nas unidades escolares é capaz de trazer uma sensação momentânea de tranquilidade, mas transformar escolas em agências de banco ou terminais de embarque em aeroportos não é uma solução estrutural e não impede novos ataques, do contrário os Estados Unidos seriam blindados contra situações assim.

Relatório do governo daquele país mostra que em 2018 nada menos que 61,4% das escolas americanas tinham equipe de segurança, percentual que subia para 84,3% nas “high schools”. Não obstante, houve 34 ataques a escolas americanas em 2021, segundo dados do Washington Post compilados pelo educador Daniel Cara em seu relatório para a equipe de transição, no fim do ano passado. No relatório há um alerta para a gravidade do problema e se apresenta um cardápio de providências a serem tomadas, cardápio este que está sendo parcialmente adotado pelo governo federal.

Bancos e aeroportos são atacados por marginais ou terroristas. No caso dos terroristas, em que também está presente o componente do extremismo, o foco é difuso, a meta é matar o maior número de pessoas indistintamente. No ataque a escolas, o alvo não é indiscriminado. A escola não é atacada por ser um alvo mais fácil do que um quartel ou uma boca de fumo. O psicopata não se detém pela dissuasão.

Cara registrava 16 ataques a escolas no Brasil entre 2002 e 2022, sendo quatro apenas no segundo semestre do ano passado. Essa conta evidentemente já subiu.

Ele destaca em conversa com esta coluna que colocar um freio nas redes é fundamental. Há indícios de recrutamento sendo feito por meio delas. “Hoje está mais fácil monitorar as comunidades desse submundo pela ‘deep web’ do que pelas plataformas comuns”, afirma. E explica: pelas próprias características de um ambiente e de outro, quem navega pelas redes está muito mais suscetível ao recrutamento do que quem opera no subterrâneo. Não raro a captura pelo radicalismo se dá pelo Twitter, ou Tik Tok, ou plataformas de gamers e o aprofundamento da radicalização se dá na “deep web”. Como se fossem uma porta de entrada.

O Twitter chocou esta semana pela arrogância ao tratar com autoridades e com a imprensa, mas não é a rede mais problemática. Cara alerta que não está se dando a atenção devida a plataformas sociais que são usadas por gamers para trocas de mensagens. É o caso do Discord, por exemplo.

As redes sociais são o fluido em que funciona um ecossistema da radicalização que já está bastante mapeado. Na base de atentados em escolas estão supremacismo branco, misoginia, antissemitismo, homofobia, xenofobia, neonazismo, obsessão com armas, com teorias conspiratórias, com imagens de extrema violência.

Há um padrão: praticamente a totalidade dos perpetradores são homens, a maioria jovens, a maioria brancos. Rudá Ricci, cientista social e educador radicado em Minas Gerais destaca o fato dos autores serem em geral pessoas que estão fora do mundo do trabalho, vítimas do tédio crônico. Alguém duvida do grande protagonismo do público com estas características nas redes sociais?

Os primeiros alvos são mulheres. Embora os últimos atentados no Brasil tenham sido cometidos com armas brancas, na maioria dos casos registrados houve utilização de armas de fogo.

Um atentado serve de gatilho para o outro. Os feitos de um psicopata são exemplos citados a outros e assim por diante. Às vezes a referência é Realengo (2012), às vezes Columbine (1996), ou então Suzano (2019). O efeito contágio é potencialmente maior nos primeiros 13 dias depois dos fatos, segundo Michele Prado. Cada evento prévio é o “dog whistle” para o próximo. O novo protocolo dos grandes jornais e redes de TV de não se colocar mais foco nos autores é uma tentativa de se minorar este efeito.

O que falta, e está tendo que ser imposto na marra, é um protocolo para o meio digital. A portaria que estabelece multa, suspensão de atividades, compartilhamento de informações sobre usuários, bloqueio de IPs é um primeiro passo. Falta renovar o instrumental legal – a lei de crimes de ódio no Brasil foi revisitada algumas vezes, mas é de 1989 – e estabelecer um conjunto de procedimentos de prevenção no meio escolar. Diversos sindicatos e entidades reuniram-se na terça-feira (11) para avançar nessa discussão portas adentro das escolas.

A guerra que está perdida é a da radicalização em si. Independentemente do que acontece na esfera política, de quem ganha ou quem perde uma eleição, o extremismo e a intolerância já tomaram de assalto o cotidiano. Só nos resta organizar o enfrentamento. (Valor Econômico – 14/04/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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