Vera Magalhães: Podres de Bolsonaro dão tempo a Lula

O efeito subjacente dos sucessivos escândalos foi tirar do foco as cobranças para que o governo comece a mostrar a que veio

Não para de aparecer podre do governo de Jair Bolsonaro, à base de mais de um por dia, desde que começaram a cair sigilos de cem anos e outros obstáculos à transparência deixados como legado pela administração anterior.

Nos escândalos mais recentes, da devassa ilegal na Receita Federal contra adversários do ex-presidente à arapongagem da Abin com equipamento israelense, passando pelo mais faiscante, as joias sauditas, fica evidente como traço comum a tentativa de sequestrar as instituições de Estado para fins privativos do candidato a autocrata, ora para perseguir desafetos, ora para proteger parentes e apaniguados, quando não para se locupletar mesmo.

A comprovação de que o projeto de poder bolsonarista incluía o aparelhamento total dos órgãos de Estado para fins políticos permite entender melhor alguns episódios recentes, como o vale-tudo nunca antes visto para tentar a reeleição, com uso de bilhões em recursos públicos, a campanha incessante para desmoralizar a Justiça Eleitoral, a depressão quando nada disso funcionou, a fuga para os Estados Unidos e a tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Como tudo malogrou, resta a dúvida quanto à volta de Bolsonaro, a sua capacidade de ainda liderar o que restou da extrema direita, à viabilidade do plano tabajara de fazer da mulher, que nunca foi da política, um chamariz de votos e, principalmente, ao ex-mandatário finalmente prestar contas à Justiça por tantos malfeitos, os anteriores a ocupar incidentalmente a Presidência e, sobretudo, os que cometeu durante esses quatro anos.

Com tanto BO bolsonarista aparecendo, o efeito subjacente foi tirar do foco as cobranças que vinham se avolumando para que o governo Lula efetivamente começasse a mostrar a que veio nas áreas-chave, notadamente na economia e na governabilidade legislativa — que são interdependentes.

Fernando Haddad e a equipe econômica tiveram certo sossego, longe do fogo amigo da ala política e da cobrança do mercado e da imprensa, para montar um marco fiscal que será apresentado a Lula e, se aprovado, enviado ao Congresso. Mas o prazo para que ele seja conhecido a tempo de influenciar positivamente na reunião do Copom da próxima semana e levar o Banco Central a acenar com um início próximo da redução da taxa de juros vai se tornando exíguo, quiçá inviável.

Expor, repudiar e investigar os crimes de Bolsonaro são tarefas republicanas e esperadas de um governo eleito para representar justamente o oposto do anterior. A gravidade e o volume do que era urdido nos porões do Estado mais que justificam que essa seja uma pauta prioritária para nós, jornalistas, para a Justiça e para o Executivo. Mas a economia vive de presente e de expectativa, e a popularidade de um governo se dá, num país polarizado, mais pela geração de bem-estar econômico que pelo contraponto do tipo “nós x eles”.

No Q.G. do PL, partido que está chateado com a água no chope dos seus planos de lucrar com a popularidade minguante do casal Bolsonaro, existe a avaliação de que Lula está gostando de manter o ex-presidente nos holofotes para ficar protegido de cobranças mais duras. Para a cúpula do partido, até a volta de Bolsonaro ao Brasil seria positiva a Lula, porque exacerbaria o desgaste do ex-presidente, que seria prontamente instado a depor na Polícia Federal por episódios como as joias das Arábias e o 8 de Janeiro.

Pode ser, e certamente esse temor é causa das sucessivas esticadas de Bolsonaro em seu exílio com ares de fuga. Mas para Lula o prazo de validade dessa trégua vai se extinguindo. E os fatos de os projetos não ganharem a luz do dia e de o Congresso não dizer que apito tocará, do governo ou da oposição, em breve podem se transformar numa primeira crise que nem o esgoto bolsonaresco mais fétido será capaz de esconder. (O Globo – 15/03/2023)

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