Luiz Carlos Azedo: Natal, a vitória da luz sobre a escuridão

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

No Natal de 1914, durante a 1ª Guerra Mundial, na região de Ypres, na Bélgica, houve uma trégua não-declarada de seis dias. Com trincheiras decoradas, soldados alemães entoaram antigas cantigas e passaram a comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Soldados ingleses e franceses jogaram uma partida de futebol na “terra de ninguém”, sem que os alemães nada fizessem, além de assistir ao jogo. A festa continuou até o ano-novo. A confraternização entre soldados de países em conflito se repetiu em vários momentos, apesar da carnificina provocada por novos armamentos, como bombas de gás, lança-chamas, ataques aéreos e carros blindados. Em 1916, soldados franceses e alemães se anteciparam ao Armistício em muitas frentes de batalha.

Do ponto de vista dos generais, a cooperação mútua era indesejável porque não ajudava a ganhar a guerra. Mas era altamente desejável do ponto de vista individual para os soldados de ambos os lados. Por patriotismo, até queriam ganhar a guerra, mas individualmente prefeririam voltar à vida normal. Um coronel britânico, ao visitar as trincheiras, ficou estupefato ao ver soldados alemães caminhando ao alcance das armas inglesas: “Nossos homens pareciam não ter notado isso. Tomei a decisão de acabar pessoalmente com esse tipo de coisa tão logo assumisse o comando; coisas como essas não poderiam ser permitidas. Evidentemente aquelas pessoas não sabiam o que era uma guerra. Ao que tudo indicava, os dois lados acreditavam na política viva-e-deixe-viver”.

Atiradores de ambos os lados exibiam seu virtuosismo mortal ao disparar contra alvos inanimados, próximo aos soldados, como cantis e panelas. “À noite, saíamos e nos posicionávamos diante das trincheiras… Os soldados alemães também estão fora, de modo que atirar é algo contrário à etiqueta.” Naquela guerra, soldados britânicos e alemães ficaram muitos meses frente a frente entrincheirados, sem saber se seriam transferidos para outro front ou não. Sonhavam com o fim da guerra e a volta para casa. Era uma combinação entre o desejo individual e o “altruísmo recíproco”, que o Natal sempre desperta. O sistema viva-e-deixe-viver não foi obra de nenhum estrategista, era o mais natural no comportamento humano.

Quantos “memes” natalinos recebemos nos últimos dias? Falam de amor, amizade, cooperação, paz, bondade, caridade, ou seja, do altruísmo recíproco dos seres humanos. O Natal é um rito que consagra esses sentimentos e valores. Os neodarwinistas, que estudam a origem e reprodução da espécie, classificaram como “meme”, que provém da palavra grega “mimeme”, a capacidade de o ser humano replicar e transmitir sua cultura. Hoje, os “memes” de Natal reproduzem o caldo de cultura da cooperação humana. Nas disputas civis, como as que acabamos de ter nas eleições, existe grande espaço para a cooperação. Aquilo que se parece como uma disputa de soma zero, com um pouco de boa vontade, pode ser transformado num jogo de soma não-zero que beneficia ambos os lados.

Mudança de clima

Por exemplo, um bom casamento é um jogo de soma não-zero, no qual os parceiros cooperam intensamente; porém, quando isso deixa de ocorrer, os casais se separam. Mesmo quando há o rompimento, existe uma ampla zona de cooperação e a possibilidade de que não haja um jogo de soma zero. O bem-estar dos filhos, por exemplo, é um bom motivo para isso. O custo de uma disputa judicial, na qual cada um tenha que recorrer a um advogado diferente, também. São muitos os exemplos de cooperação num ambiente de disputa e competição, como o da sociedade em que vivemos. Certos ritos consagrados, como o Natal, servem para nos lembrar como isso é importante.

O recente processo eleitoral nos mostrou uma sociedade muito polarizada, tanto do ponto de vista ideológico quanto em relação aos interesses mais objetivos e imediatos. Entretanto, já houve uma mudança de ambiente da água para o vinho — nada mais bíblico. As pessoas estão mais alegres, mais esperançosas, mais preocupadas com o outro. O presidente Jair Bolsonaro continua inconformado com o resultado das urnas e não vai à posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, refugando o rito democrático de passagem da faixa presidencial. A elite do país e a classe média que o apoiaram, em sua maioria, porém, reconhecem o resultado do pleito e não têm interesse num país conflagrado permanentemente, num jogo de soma zero, na base do “quanto pior, melhor”, no qual todos perdem.

O Hanuká é uma festividade judaica que celebra a vitória da luz sobre a escuridão e a luta dos judeus contra os seus opressores, durante oito dias. O mês de Kislev, no calendário judaico, corresponde a dezembro no calendário gregoriano. Do ponto de vista filosófico, celebrar o Hanuká significa celebrar a vitória da luz sobre a escuridão, a vitória da pureza sobre a degeneração e da espiritualidade sobre o materialismo. As velas acesas no parapeito da janela fundam uma zona de passagem, entre o familiar e o fora, uma zona de troca entre o diferente e o privado. A palavra iídiche Hanuká nos remete a fundar, renovar, ensinar, reinventar o novo, apesar dos desejos de persistir no mesmo e no sempre. São desejos natalinos.

Feliz Natal! (Correio Braziliense – 25/12/2022)

Leia também

Desoneração da folha é leite derramado

NAS ENTRELINHASO Congresso pretende reduzir os impostos e exigir...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!