Luiz Carlos Azedo: Confronto Lula versus Bolsonaro protagoniza semana épica

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Os poemas épicos surgiram na Antiguidade, porém, entraram em decadência no século XVII, quando surgiram as narrativas em prosa, o romance. Dom Quixote, por exemplo, de Miguel de Cervantes, foi uma obra revolucionária porque representou a invenção do romance e, ao mesmo tempo, desnudou a realidade. Quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo.

A vida se abriu com a nudez cômica de sua prosa, destaca o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras): “Assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, o mundo, quando corre em nossa direção, no momento que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta.”

Ilíada e Odisseia, de Homero; Eneida, de Virgílio (70 a. C.-19 a. C.); e Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (1524-1580), são exemplos de poemas épicos. Toda epopeia clássica começa com a revelação do herói e sua temática, invocando uma divindade inspiradora do autor, que narra os feitos heroicos do protagonista. Ou seja, a inspiração é o passado, mas este serve de reverência atemporal para a História, representa o processo civilizatório. Não à toa Virgílio buscou inspiração em Homero. Roma resgatava a cultura e os padrões estéticos da Grécia Antiga, numa narrativa plena de aventuras e heroísmo.

No poema épico, o herói reproduz as qualidades do seu povo, não apenas suas características individuais. Tem uma missão quase impossível a cumprir, o que destaca suas qualidades ao longo de uma narrativa, na qual suas dificuldades são extraordinárias. No modernismo, o poema Mensagem, de 1934, o poeta português Fernando Pessoa, com métrica e rima, resgata o heroísmo e a grandeza de Portugal no período dos Descobrimentos, numa crítica à decadência da elite de sua época.

Publicado oficialmente no México em 1950, e clandestinamente no Chile, no mesmo ano, “Canto Geral”, de Pablo Neruda, é outro poema épico. Escrito quando o poeta fugia do Chile para Argentina, pela cordilheira dos Andes, os versos denunciam as injustiças históricas que os países da América Latina sofreram ao longo dos séculos. Vilões e heróis são reclassificados a partir da sua perspectiva.

Escrito em Buenos Aires, em 1976, o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, é outro exemplo de poema épico. Seus dois mil versos são uma espécie de ode à liberdade. O poeta já havia estado exilado em Moscou, em Santiago e em Lima. No Brasil, o regime militar implantado após o golpe de 1964 tinha autorização para enviar agentes dos serviços de segurança à Buenos Aires e capturar políticos oposicionistas. Temendo pela própria vida, Gullar trancou-se no apartamento onde morava, na Avenida Honório Pueryredon, em Buenos Aires, e escreveu o poema como se fosse um testamento, uma síntese do que pensava sobre a cultura e a vida.

Mitos e heróis

Teremos uma semana épica aqui no Brasil, na qual está se decidindo o nosso futuro, num embate entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, que pode se decidir no primeiro turno em favor do primeiro ou nos levar a um segundo turno imprevisível, não do ponto de vista eleitoral, mas institucional. Será uma semana tensa, de muitas agressões e estresse emocional.

O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” A nossa história mostra o quanto a luta política pode ser cruel.

Lula e Bolsonaro são figuras mitológicas da política brasileira, Lula é o líder metalúrgico que chegou lá, passou o pão que o diabo amassou após deixar o poder e renasceu das cinzas, como fênix. Bolsonaro é o “mito” que desafiou o sistema, construiu uma carreira política na contramão, lançou-se à disputa pela Presidência com a cara e a coragem, sobreviveu ao atentado que o deixou entre a vida e a morte na reta final da campanha de 2018. Um tenta voltar ao poder, com o passivo dos escândalos de seu governo e um legado de realizações sociais; o outro, tenta a reeleição, com uma agenda conservadora e o fardo de um governo desastrado, da falta de empatia e das suas grosserias misóginas. Encarnam o papel de herói e anti-herói, simultaneamente, para uma sociedade dividida entre “nós” e “eles”.

Ulysses, o semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse um gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt dizia que a disposição de pensar, agir e falar politicamente pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer. Lula e Bolsonaro estão ancorados no passado, têm projetos antagônicos, populistas, um é democrata, o outro é autoritário, mas vão decidir o futuro de todos nós. (Correio Braziliense – 25/09/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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