Esta é uma coluna sobre o Partido Nazista — mesmo que não pareça.
Toda filosofia que temos para refletir a respeito de liberdade de expressão parte do pressuposto de que há uma barreira de entrada para alcançar um público grande. Fosse para publicar um texto e distribuir ou, mais recentemente, falar na TV aberta, sempre foi difícil chegar lá. Hoje, exige apenas a compra de um aparelho celular. E quem decide o alcance de uma mensagem não é um ser humano. É um programa — e esse programa é um editor de imprensa marrom de quinta que privilegia incentivar conflitos.
Nos séculos XVIII, XIX e XX, o tempo de existência das democracias, levar sua opinião a muita gente era uma corrida de obstáculos. Conseguiam falar com muitas pessoas apenas aqueles que desenvolvessem uma ou mais capacidades. Estudavam muito ou sofisticavam suas habilidades políticas ou desenvolviam um carisma quase mágico. Fundamentalmente, tudo isso demorava tempo e incluía convencer muita gente de que valia a pena levar sua voz a muitos. O século XXI não tem nada disso.
Se, até aqui, o argumento parece nostálgico ou conservador, não é. As coisas mudam.
Só que, quando as coisas mudam, precisamos nos readaptar. Porque, afinal, a filosofia que temos para refletir sobre a liberdade de expressão se baseia numa premissa que não existe mais. Não adianta falar que maus argumentos serão derrotados por bons argumentos. Isso era no tempo em que havia tempo. Hoje maus argumentos ficam, contra-argumentos não chegam e nos distraímos com o primeiro biquíni após o segundo nazista. Não há mais o mercado em que ideias disputam espaço. Foi substituído por um mercado de distrações de um minuto ou menos.
O que não mudou foram as democracias. Elas continuam necessitando de um debate público que incite reflexão, que dê tempo ao amadurecimento de ideias, que convoque as melhores mentes a argumentar na praça pública perante toda a sociedade.
Quando todos estão distraídos, onde é que discutimos ideias?
Porque, convenhamos. Passamos a última semana discutindo sobre a possibilidade de o Partido Nazista ser legal no Brasil. Há algum nazista requerendo tal autorização? Não. O que há é um gamer bêbado que gosta de chocar e fala com milhões. Um ex-BBB elevado a comentarista político que decidiu fazer a saudação romana em rede nacional. E um deputado que, apesar da boa atuação parlamentar, fora da Câmara brinca de MBL, aquele movimento de trintões de direita que fingem adolescência na tela do celular.
O que isso tem a ver com o Brasil? Nada. Os problemas do Brasil são que matamos jovens pretos numa proporção abominável, a fome voltou e arde nas ruas, a inflação atingiu pela primeira vez desde o Real níveis preocupantes e, ora, há um fascista de verdade na Presidência da República. Uma lei que proíbe suásticas não evitou seu discurso ou sua eleição. (E, ora, a lei já existe.)
Nada disso é acidente. O gamer bêbado e o ex-BBB sabem que terão muitos likes, muitos compartilhamentos, que virarão trending topics se provocarem o bastante. Não sabem é que aqui, como em qualquer canto do Ocidente, não se cruza a segunda regra de ouro. Holocausto e pedofilia são temas com que não se mexe. Fora dessas duas categorias, a internet perdoa qualquer rompimento daquela primeira regra de ouro, a original, do rabino Hillel: aquilo que não gostaria que fizessem com você, não faça com os outros. Não vale pras redes sociais. Nelas, dá audiência.
Não é um debate sobre liberdade de expressão. Nosso problema é outro: a praça pública, onde discutimos as questões da sociedade, se perdeu num mar de distrações. Na perda da ágora ateniense, voltamos à Roma imperial. Neste tempo de pão e circo, periga descobrirmos que o século XX era mais moderno que o XXI. (O Globo – 11/02/2022)