Há dois desafios diante de nós que poderão definir o curso das eleições de 2022, tanto para presidente da República quanto para governadores e para as representações parlamentares. Enfrentados com espirito público e exigência histórica poderão redefinir também o espaço da centro-esquerda em nosso país.
O primeiro é que a população seja capaz de rever o grave erro de 2018 e impedir mais um mandato de Jair Bolsonaro. Nesse caso, a eleição está revestida de um caráter plebiscitário. Bolsonaro é, certamente, o pior presidente da história do Brasil. Seu governo foi traumático para os brasileiros, notadamente por seu negacionismo, que deixou um saldo de mais de 600 mil mortos em razão da péssima gestão sanitária durante a pandemia. Bolsonaro manteve-se como uma ameaça permanente à democracia e à convivência cívica, promovendo diuturnamente um ataque destrutivo às instituições democráticas. À arrogância dos arroubos antidemocráticos somou-se a desorientação econômica cujo resultado a olho nu é o aumento da desigualdade, da fome e do desamparo aos mais necessitados. A obra de reconstrução depois de Bolsonaro será dura e difícil.
O segundo desafio é mais estrutural e estratégico. Trata-se de redefinir um rumo para o País. Por sorte, Bolsonaro não conseguiu erodir por completo a democracia nem tampouco alguns dos pilares da experiência moderna brasileira. Uma trajetória com muitos déficits, é certo, mas também de conquistas e avanços importantes. O Brasil construiu sua experiência moderna buscando sempre se atualizar ao mundo. Mesmo em períodos onde predominou um certo “nacionalismo”, a lógica do aggiornamento ao andamento do mundo se manteve presente. E isso se deu tanto no plano das instituições políticas, das ideias, da cultura e das ciências quanto na vida material, na ampliação da vida urbana, no estabelecimento e avanço da industrialização, na modernização do campo, na incorporação e inovação tecnológica, etc. Mas, com Bolsonaro, o país ingressou numa deriva dramática e não se vê emergir organizadamente uma nova proposição de articulação entre a nossa específica modernização e a imperiosa necessidade de retomarmos os eixos da nossa atualização ao mundo.
Diante dessa encruzilhada, antes de delinear respostas é preciso saber fazer perguntas. Mobilizando Lenin, dirigentes petistas retomam de forma grandiloquente a pergunta: “quem são os inimigos do povo?”, quando, a partir da mesma inspiração, a pergunta mais adequada, metodológica e politicamente, seria outra, a saber: “o que fazer?”. Perguntas inadequadas, com respostas simples (e falsas) podem agradar, mas são retóricas e apenas iludem. Desafiadoras, as perguntas corretas exigem respostas inovadoras, abertas e corajosas.
Quando Fernando Henrique Cardoso, a propor a estabilização da moeda e o controle da inflação, definiu que era necessário dar um rumo para o País, o Brasil conseguiu se reintegrar à globalização, com mudanças internas significativas, dentre elas as privatizações e a reforma administrativa do Estado. Lula não retroagiu os elementos basilares dessa estratégia; ao contrário, os usou com êxito, embora equivocadamente os tenha tratado como “herança maldita”. Os descaminhos que viriam longo em seguida todos conhecemos e o país perdeu o rumo. Bolsonaro é apenas uma das consequências dramáticas desse enredo. Mas vale mencionar: culpado por enrijece-la, não foi ele quem inventou a maldição da polarização que nos divide e bloqueia nossa democracia.
Para além dos grandes personagens que se perfilam às eleições presidenciais de 2022, o fato é que passou a existir uma janela de oportunidade para uma virada substantiva no seio da esquerda democrática. A supressão das coligações e a já definida “cláusula de desempenho” bem como a recém-estabelecida possibilidade de se constituir “federações partidárias” é uma abertura a novas possibilidades.
A direita democrática movimentou-se no sentido da agregação, fundindo PSL e Democratas no “União Brasil”. Algo similar ocorre com a esquerda satelitizada por Lula. A filiação de Bolsonaro no Partido Liberal (PL) é apenas protocolar. Como não poderia ser diferente, o que predomina, nesses casos, são interesses eleitorais de caráter local e regional.
Há, contudo, um espaço aberto à centro-esquerda, que não se configura apenas como eleitoral. A realização de prévias no PSDB, que deu a vitória a João Doria foi o fato mais relevante nesse campo. Não é aqui o lugar mais apropriado para discutir essas prévias e seus resultados. Mas é açodada ou simplesmente equivocada a conclusão de que o PSDB foi “devastado pelo bolsonarismo”.
O fato é que a centro-esquerda – e aí se pode incluir o Cidadania – ainda não se movimentou no sentido de articular uma “federação”, que pela legislação deve durar os 4 anos da legislatura a ser eleita em 2022. PSDB e Cidadania (e talvez mais alguns partidos) poderiam refletir seriamente sobre isso. Entre os dois partidos há um percurso razoavelmente comum e responsabilidades compartilhadas em duros momentos de defesa e renovação da Nação que os habilita e dá um lastro positivo para se pensar nessa possibilidade. Estaria aberta aí, com a “federação” inicialmente pensada entre esses dois partidos de culturas políticas aproximadas e muitos pontos em comum, o espaço de uma renovação da socialdemocracia brasileira.
Não é o caso aqui de alinhavarmos um programa mínimo para essa “federação”, mas ela deve expressar um contraponto forte tanto à direita extremada quanto à esquerda anacrônica que pontificam no cenário político atual. Com ela, a centro-esquerda terá condições de recuperar a função nacional, democrática e reformadora, a ser desempenhada por essa corrente política essencial para o futuro do País.
(Horizontes Democráticos – 17/12/2021)