A DC está por trás da União Europeia e do estado de bem-estar social na região
A derrota da CDU/CSU, de Angela Merkel, tem sido entendida equivocadamente como uma ruptura. De uma perspectiva mais ampla, há também outro problema interpretativo: muitos analistas têm subestimado o papel estruturante da democracia cristã (DC) na formação da Alemanha contemporânea e da própria Europa continental no pós-guerra, o que explica sua resiliência.
Há elementos de ruptura mas são mínimos. O vencedor das eleições —Olaf Scholz— é o atual ministro da fazenda da grande coalizão, integrada pelo CDU/CSU e SPD, e liderada por Merkel. O SPD ganhou as eleições com o menor percentual de votos já registrado pelo partido mais votado. Isto explica-se pela crescente fragmentação dos sistemas partidários dos países da OCDE. Estamos longe do padrão histórico no qual partidos social democrata e socialistas obtinham votações expressivas. A surpresa foi o desempenho pífio do partido verde, que havia se convertido no segundo maior partido, e para quem ainda acreditava na ameaça populista radical, a involução do AfD.
Os grandes países europeus no pós-guerra foram todos governados pela DC, com a exceção do Reino Unido (a população total dos países pequenos nórdicos equivale a apenas a metade de países como a Italia). Antes de Merkel, Adenauer foi chanceler (1949-1963) e liderou a CDU/CSU na constituinte alemã (1949), quando o partido detinha 40% das cadeiras do parlamento. É dessa era o milagre econômico alemão e a consolidação exitosa da democracia. O partido voltou a controlar o país por mais 16 anos entre 1982 e 1998, sob Kohl, de quem Merkel era uma protegida. Adenauer tem sido chamado de pai da Alemanha contemporânea, mas o epíteto de avô teria sido mais apropriado; ele deixou o cargo de chanceler aos 87 anos.
Em “What is Christian Democracy?: Politics, Religion and Ideology” (2019), Carlo Accetti, argumenta que a DC está por trás de dois processos históricos, equivocadamente associados exclusivamente à social democracia e ao liberalismo: o estado de bem-estar social e a União Europeia. Até 1998, a DC governou a Itália durante 47 dos 52 anos desde a 2ª Guerra; a Alemanha, durante 36 (dos 50 anos); a Bélgica, 47 (53); a Holanda, participando de coalizões, em 49 (53), além de países menores.
Na França, a DC (representada pelo MRP) foi eclipsada pelo Gaulismo mas forneceu primeiros-ministros e grandes lideranças políticas e intelectuais. Seu líder no país —Robert Schulman— foi junto com Adenauer e De Gasperi o principal arquiteto da União Europeia. Sim, vale lembrar que os três lideres eram católicos devotos, mas a DC não tinha caráter confessional, e defendia uma economia social de mercado e a democracia liberal. (Folha de S. Paulo – 11/10/2021)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)