Marco Aurélio Nogueira: As vidas cruzadas de Marx e Engels em biografias

É bastante sugestiva a afirmação de que em toda dupla de parceiros algumas diferenças de estilo e personalidade atuam de forma complementar. Um é fulgurante, o outro é mais discreto; enquanto um é organizado e sistemático, o outro é talento e explosão.

Não se sabe o quanto há de verdade nisso. Mas a afirmação cai com perfeição na trajetória dos amigos Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), intelectuais e ativistas políticos alemães que, no século 19, propuseram uma teoria destinada a revolucionar o pensamento social e a incidir vivamente nos desdobramentos da vida moderna ao longo do século 20 e depois, nas primeiras décadas do 21. Passaram a integrar a história do pensamento crítico e das revoluções sociais que, em boa medida, ganharam impulso com as ideias que os dois amigos plantaram sem saber que floresceriam com tanto esplendor.

A vida e a obra de Marx e de Engels são analisadas por duas biografias recentemente lançadas pela Editora Boitempo. Escritos com esmero, os livros não só apresentam as vicissitudes existenciais de Marx e Engels, como também recobrem o cenário político e intelectual europeu e as origens do socialismo no século 19.

O historiador alemão Gustav Mayer dedicou três décadas para seguir as pegadas de Engels. Seu livro foi publicado em 1935, mas tem tanto vigor e é tão bem escrito que não decepcionará o leitor atual. Embora seja erudito, o texto desliza com facilidade e encanta pelo ritmo literário.

Friedrich Engels foi um personagem ímpar na história do socialismo e do marxismo. Filho mais velho de um industrial alemão ligado à indústria têxtil, cuidou dos negócios da família mas se dedicou mesmo ao ativismo político e teórico. Por conta própria, estudou filosofia, ciências da natureza e arte militar, na qual se tornou um especialista. Foi o principal responsável pela organização dos congressos comunistas iniciais, de onde nasceria, anos depois, o primeiro grande partido social-democrático alemão. Colaborou intensamente com Marx, escrevendo algumas obras em conjunto com ele (como o Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã). Foi um organizador incansável, um homem de múltiplas funções. Generoso, deu o devido suporte material a Marx, sempre às voltas com a falta de dinheiro.

Segundo Mayer, Engels “herdou do pai não apenas uma mente viva e capaz, cheia de agudo senso crítico, mas também o temperamento alegre e amável que o distinguiu”. Aproveitou o fato de ter visto de perto a miséria dos operários fabris para publicar, em 1845, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. “Cresceu em um mundo que lhe deu condições de mostrar a seus compatriotas o primeiro retrato completo da força revolucionária do capitalismo à medida que avança em direção a seu pleno desenvolvimento”. Seus insights foram decisivos para a formatação do marxismo. Foi Engels, por exemplo, que chamou atenção para a necessidade de se compreender a estrutura do capitalismo e a posição do proletariado e da burguesia. Também se empenhou para integrar a filosofia dialética alemã e a economia política inglesa, e para internacionalizar a união dos comunistas.

A amizade com Marx foi fraternal e cooperativa. Os amigos se encaixaram um no outro. Estiveram sempre convencidos da contribuição que cada um poderia dar ao pensamento do outro. Conheceram-se por volta de 1844. Segundo Mayer, seu caráter contrastava com o de Marx. “Se o espírito ativo e persistente de Engels era como a torrente da montanha, Marx era como a tempestade que golpeia sem prestar atenção se destrói ou edifica”. Engels era mais prático e intuitivo, tinha clareza sobre o rumo a seguir. “Era muito menos nervoso, muito mais estável que Marx; tinha uma disposição mais brilhante, menos contorcida e mais harmoniosa; física e intelectualmente era mais elástico e resiliente”. E sabia viver a vida. “Não era torturado pelo demônio da inquietação que impedia Marx de se render à alegria de experiências que o mundo tem a oferecer. Marx era movido pelo aguilhão afiado da genialidade, Engels vivia sob o domínio mais suave de sua rica humanidade”.

Os amigos compartilharam as emoções produzidas pelos choques políticos que varreram a Europa depois de 1848, mas também suas frustrações. A revolução não viria da maneira que imaginavam: em vez de “explodirem”, os avanços se processariam aos poucos, molecularmente. Mais para o final da vida, Engels convenceu-se de que a fase das barricadas e dos combates urbanos precisaria ceder espaço para a luta eleitoral, trocando a revolta inflamada pela inserção da social-democracia nos limites legais do Estado.

A biografia escrita por Mayer nos apresenta Engels sem exageros e rapapés. Fornece uma visão de conjunto da vida e da época do biografado. “Foi uma fortuna de Engels que, durante o último período de sua vida, tanto sua concepção de história quanto o movimento social e político que, como ele acreditava, o ‘espírito do mundo’ estava destinado a realizar, tivessem depois de lutas duras e bem-sucedidas entrado em um período de expansão e conquista”. O que viria depois, nas primeiras décadas do século 20, sobretudo na Alemanha, teria lhe causado bem mais do que uma decepção.

Já a biografia de Karl Marx, escrita por José Paulo Netto, é um claro exemplo de como se pode escrever sobre quem se admira sem escorregar em reiterações doutrinárias. Netto faz questão de afirmar sua adesão à teoria de Marx e a suas implicações práticas logo nas páginas iniciais, quando se apresenta como um “marxista convicto”, que estaria, acrescenta, precisamente por isso, obrigado à objetividade. Quer, desde logo, afastar a suspeita de que apresentaria uma visão “sacralizada, hagiográfica”. O livro é abundante em notas e referências bibliográficas, acomodadas no terço final do volume de 800 páginas.

Sua biografia deseja fornecer ao leitor uma visão panorâmica da vida e da obra do pensador alemão, procurando reter o que há de essencial nela. Analisa as circunstâncias histórico-sociais e as moradas de Marx em Berlim, Paris, Bruxelas, Colônia e Londres. O foco principal, porém, repousa na evolução das ideias marxistas e na compreensão dos contextos em que foram elaboradas.

Ao resenhar criticamente os principais textos de Marx, Netto busca o que qualifica o marxismo, mas também destaca seus limites e insuficiências, especialmente diante das grandes transformações econômicas e sociais que se sucederam a partir da segunda metade do oitocentismo. Para ele, Marx não foi o teórico do comunismo, mas o “teórico do capitalismo”, aquele que forneceu a chave para interpretar esse modo de produção e, nessa medida, superá-lo. “Compreendo a obra de Marx como a fundação da teoria social revolucionária, e não uma síntese enciclopédica de conhecimentos” – uma teoria que se constituiu progressivamente, com direito a “giros e revisões, continuidades e mudanças”, numa composição unitária e aberta, quer dizer, não concluída com ele.

Há, portanto, uma constante atualização do marxismo, a par com as novas condições históricas. Os textos de Marx, observa Netto, não são suficientes para que se entenda o mundo em que vivemos, mas sem eles esse mundo não pode ser compreendido a fundo. Deve-se partir deles para ir além deles.

Ambas as biografias estão muito bem editadas e são enriquecedoras. Ajudam a blindar o marxismo contra as falsificações anticomunistas que, hoje, fazem a festa das “narrativas” de extrema-direita. Mostram que o marxismo continua a ser importante recurso para que se interprete a vida contemporânea e se pense em reorganizá-la de modo mais justo e generoso. Numa época de “guerra cultural” ideológica, fornecem um mapa para que se escape de manipulações interpretativas e se valorize um legado intelectual que merece ser conhecido. (O Estado de S. Paulo – 29/05/2021)

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

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