A trajetória de Bolsonaro é marcada por uma singularidade notável: nenhum dos governantes populistas com os quais é comparado —Trump, Orban, Obrador, Modi, entre outros— sofreu metamorfoses tão profundas no padrão de governança ao longo do seu mandato. Sua ascensão ao poder está associada fundamentalmente a sua rejeição à velha política. A mesma, no entanto, que ele veio a abraçar em guinada inédita, antes de alcançar a metade do mandato. Quais as consequências desta reconversão?
Sim, embora já fosse veterano de sete mandatos, pelo papel inteiramente marginal que ocupou na política congressual nacional Bolsonaro podia apresentar-se ao eleitorado nacional como um outsider. Ele é representante típico do “dégagisme”, a rejeição à velha política —como no “que se vayan todos”— da forma que analisa Pierre Rosanvallon em seu novo livro (ainda inédito em português).
O historiador argumenta que “coalizões negativas fazem chegar ao poder personalidades improváveis das quais a virgindade política e aparição do nada são as principais qualidades”. É certo que a “virgindade política” caberia como qualificação de Bolsonaro apenas com as qualificações anteriores. Mas o que importa aqui é que o estilo presidencial foi marcado pelo maximalismo e pelo repúdio à barganha política. O ponto é que sua ascensão de fato assenta-se em uma coalizão negativa.
A rejeição da política tradicional é comum a todos os atores que ocupam posição marginal no sistema político ou estão fora dele. O dégagisme é marcado pela ausência de referências a competência ou a desempenho, centrando-se na política da autenticidade. Aqui até a ignorância é valorizada como sinal de ausência de máculas oriundas de vícios burocráticos ou partidários.
O ideal de representação política é o da chamada representação descritiva: o representante será tanto melhor quanto mais se pareça com os representados, inclusive no que se refere a ausência de conhecimento e preconceitos. Nesta tradição iliberal, valoriza-se uma certa naiveté e brutalidade porque autêntica.
Mas, ao fim e ao cabo, a virgem foi ao bordel. A metamorfose ocorrida tem custos junto ao eleitorado, mas eles podem ser menores do que poderíamos pensar. A conversão de Bolsonaro em um político como outro qualquer reduz seu apelo junto ao bolsonarismo raiz, mas o impacto líquido sobre o voto é baixo. Torna também o alerta que representa uma ameaça golpista menos crível junto ao eleitorado volátil.
A política da autenticidade perde importância e potencialmente o foco é posto no (pífio) desempenho presidencial. No entanto a arquitetura da escolha é que será determinante: trata-se de uma escolha entre duas opções. (Folha de S. Paulo – 17/05/2021)
Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)