De acordo com dados coletados pela Agência Pública, apesar de na população cerca de 56% se declararem negros e pardos, somente 19% dos vacinados são negros e pardos. Essa certamente é uma das injustiças do processo de vacinação em curso. Existem muitas outras – trabalhadores da educação, a população carcerária, profissionais de saúde que não estão na linha de frente e foram vacinados, trabalhadores de limpeza que atuam em hospitais e não foram vacinados, pacientes com síndrome de Down, cuja expectativa de vida é de 60 anos e não foram incluídos nos grupos prioritários, amigos do rei…
Aparentemente o plano de vacinação divulgado pelo PNI foi algo próximo de um “copia e cola” do Hemisfério Norte, com as correções que acomodavam a inclusão de militares, etc, etc. Neste momento o Congresso está preparando sua proposta de lista, em uma clara invasão de competências. Clara e merecida. Se o Executivo é incapaz de oferecer uma lista de prioridades, se ora diz para usar a segunda dose e ora diz para guardar, se entrega vacinas do AM no AP e ainda pode confundir RS e RN, MT e MS, alguém precisa pôr ordem nessa balbúrdia. Que seja o Congresso.
Que aproveitará para corrigir outras injustiças – afinal como se pode impedir que quem tem dinheiro não ajude o SUS se vacinando antes? É tão claro esse raciocínio sobre a questão de primeiro o meu pirão. E não se pode tentar justificar, somente engolir. Mas o problema será criar uma porta dentro da combalida estrutura do SUS, que permita – em futuro que espero distante – a mesma discussão em relação aos transplantes, afinal não se trata de passar na frente e sim de ajudar a esse SUS que não funciona. Mas por que não funciona e necessita que a iniciativa privada venha tão prontamente em seu socorro? De quem é a responsabilidade – do Estado, do governante de plantão, da sociedade que fez más escolhas e agora aos ricos só resta remediar?
A escassez de vacinas é parte importante da resposta. E ela existe porque a oferta está comprometida com demandadores que acordaram cedo e compraram toda a produção. Temos Fiocruz e Butantan que saíram cedo à compra, mas também não tem havido muita transparência com a informação passada à sociedade.
Existem outros fornecedores de vacina no mercado mundial? Temos, mas são incapazes de oferecer ao órgão regulador a comprovação da eficácia e segurança de seus produtos. Sem burocracia, me refiro apenas a dados que hoje no mundo civilizado são muito padronizados, mas os russos tinhosos não os querem entregar e os indianos até o fazem, mas não conseguem passar em uma inspeção de boas práticas de fabricação. São essas vacinas que os nossos valorosos empresários querem trazer? Semelhantes àquelas de Minas. Melhor não.
Temos de colocar ordem na casa – redefinir por meio de uma comissão de cientistas uma proposta para ser discutida com a sociedade a respeito da ordem de vacinação, fechar um cronograma de entregas transparente e também fazer uma campanha de vacinação que informe a população do que irá ocorrer, capacitar os vacinadores no uso dos instrumentos de vacinação (questões técnicas – como uso de seringas, frascos diferentes de vacinas – e burocráticos, como softwares de registro de quem foi vacinado, com que vacina)….
E chega de confundir a luta inglória contra essa pandemia que está ceifando a vida de tantos brasileiros com as eleições de 2022 e com os maus governantes que escolhemos e cujos equívocos temos de tentar corrigir.
Não! Tenho imenso orgulho do glorioso Plano Nacional de Imunização e da ação fundamental do SUS nesta pandemia. (O Estado de S. Paulo – 06/04/2021)
GONÇALO VECINA, FUNDADOR E EX-PRESIDENTE DA ANVISA, É MÉDICO SANITARISTA, EX-SECRETÁRIO DE SAÚDE DE SÃO PAULO E PROFESSOR DA EAESP/FGV E DA FSP/USP