Neste livro de 1976, o historiador John Keegan (1934-2012) estuda três batalhas clássicas, Anzicourt, Waterloo e Somme (1916, primeira guerra mundial). O objeto de estudo de Keengan não é o movimento militar em si, mas o comportamento humano, no que os anglo-saxões chamam de Névoa da Batalha, ou seja, a falta de informações, imprevistos e obscuridades vividas pelos combatentes durante uma batalha. Keegan analisa em que situações, por exemplo, soldados sob pressão fogem e em quais ficam ainda mais aguerridos e combatem com mais vontade.
A primeira guerra mundial, que foi uma guerra de posições, ou seja, de trincheiras, se caracterizou por longos períodos sem novidades no front. Entre ofensivas que partiam com grande pressão, penetravam profundamente nos linhas inimigas, estendendo suas linhas e dificultando a logística a um custo enorme de perdas humanas e materiais. Conquistavam posições, mas em seguida, eram empurradas de volta para as trincheiras de onde tinham partido e o teatro de operações voltava ao que era, a não ser pelos mortos, feridos e mutilados. Foi o que ocorreu com a ofensiva de Kerensky (junho de 1917), após quilômetros de penetração triunfal na linhas alemãs, os russos foram empurrados de volta com muitas perdas e o desmantelo do governo, abrindo caminho para a tomada de poder em outubro pelos Bolsheviques.
Quando o STF permitiu a volta da elegibilidade de Lula, não vou entrar no mérito jurídico pois não o conheço, o que se viu em seguida foi o que era esperado. Lula se inflamou e se apresentou como potencial candidato. Tumultuou o cenário político como um terremoto. Sua entrada em cena estreitou possibilidades. Candidaturas que performam mais nos campos populares ou à esquerda sentiram o peso. Um dos fatores que mais mexeu com todos, foi que, pela estatura e reverberação que Lula tem, sobreveio uma sensação de que finalmente surgiu uma voz de oposição à altura do Bolsonaro, a cavalaria chegou, rBolsonaro já não está mais à vontade em campo, jogando sozinho.
O pólo democrático tomou um choque e percebeu o que todos sabiam, será preciso construir um caminho de consenso ou frente capaz de se contrapor aos extremos populistas, para viabilizar uma candidatura que tenha musculatura. O pior dos cenários seria repetir 2018, com a pulverização das opções. A entrada de Lula, provocado o choque inicial, pode sofrer a desidratação que sofriam as linhas de avanço na primeira guerra mundial. Após um primeiro momento triunfante, com toda a atenção da imprensa e toda a movimentação que as redes lulistas realizaram, viralizando videos de excelente conteúdo, partido pro ataque, acuando Bolsonaro e lhe impondo uma narrativa e agenda negativas, vai sofrer provavelmente a contraposição das redes Bolsonaristas num ponto futuro.
O problema do pólo democrático no momento é o trabalho de construção, o qual vai necessitar de um nome à altura, alguém que consiga falar com a firmeza necessária na defesa dos pontos de vistas democráticos, republicanos. e civilizatórios. Mais uma vez precisaremos repetir o que nos norteou há mais de uma década no Cidadania/PPS, a radicalidade democrática. Será preciso radicalizar na defesa de postos de vistas, o que não implica em dizer radicalizar contra pessoas, mas sim, na defesa de uma agenda positiva para o país. Precisamos ser generosos e respeitar aqueles que votaram no Bolsonaro, aqueles que votaram no PT, devemos ouví-los e só conseguiremos atrair os milhões de votos dos arrependidos ou que estão em dúvida se apresentarmos propostas de futuro ao invés de ruminar o passado. A tarefa que temos pela frente é dura, e a realidade que pode se impor, inclusive de caos social e econômico, que tende a potencializar extremos.
Retomando a Keegan, o pior que uma tropa pode fazer é virar fuzis e sair correndo em disparada, as baixas são muito maiores do que um recuo ordenado. Como diziam os antigos comunas, não se deixe morrer com o estampido do tiro. Flertar com a viuvez do lulismo agora é o pior que o pólo democrático poderia fazer e talvez comprometa sua existência. A radicalidade deve se dar na construção de um caminho que atenda à demanda de um novo futuro por parte da sociedade que não deseja, em sua maioria, a volta do petismo, do mensalão, petrolão ou o que seja, mas também não quer o autoritarismo negacionista e patriarcal de Bolsonaro.
Quando perguntaram a Churchill se ele faria acordo com Hitler naquele distante 1940 com a França derrotada e a Inglaterra isolada e acuada em sua ilha, ele proferiu um dos mais belos e importantes discursos da história, no qual avisou que não se renderiam e combateriam no mar, nas praias, nas montanhas, nos campos, com paus e pedras se fosse necessário. Precisamos agora daquele espírito inquebrável, temos um recado a dar: iremos trabalhar incansavelmente, não desanimaremos, iremos enfrentar as adversidades onde for, nas redes, nas ruas, nos diretórios partidários, no congresso, na família e entre amigos. Devemos levar a mensagem de que a ajuda está chegando, e realizaremos juntos um caminho protagonista do futuro, da esperança e do avanço democrático e civilizatório.
Paulo Siqueira, diretor de cinema e escritor