Polarização não pressupõe simetria política
Muitos analistas têm apontado para um recrudescimento da polarização política em virtude da possível participação de Lula na eleição de 2022. O debate tem girado em torno de uma disputa entre dois extremos ideológicos e sobre o espaço para uma candidatura de centro, argumento que é criticado porque não haveria simetria ideológica ou programática: o PT e seu candidato não seriam extremistas.
Há aqui um equívoco argumentativo, porque várias dimensões separadas estão justapostas. O que, ou quem, está polarizado? Partidos, políticos individuais ou o eleitorado? E mais: a polarização não se confunde com a localização de partidos ou candidatos no continuum ideológico.
Como demonstrado por pesquisas empíricas, a polarização política nas democracias avançadas, sobretudo nos EUA, onde se manifestou de forma intensa, não está ancorada em divergências programáticas. Embora os políticos estejam crescentemente polarizados, muitos cidadãos convertem-se em “ideólogos sem questões”, como argumenta Liliana Mason.
A divergência programática em torno de políticas públicas —da econômica à social— mantém-se relativamente estável nos EUA há décadas; em relação a temas comportamentais (ex., casamento homoafetivo), há inclusive crescente convergência, não divergência.
Naquele país, a percentagem da população que não apoia o partido Democrata ou o Republicano atingiu níveis históricos: mais de 40% se declaram independentes, o que os tornou o maior grupo. Observa-se simultaneamente uma crescente e intensa animosidade entre eleitores que se identificam com aqueles partidos. Assim, há crescente polarização afetiva, que independe de preferências ideológicas.
Muitos apontam para uma polarização entre antipetismo e antibolsonarismo, mas a fórmula é analiticamente pobre, porque se aplica apenas à parcela do eleitorado com alguma identificação partidária e ideológica. Aqui está ausente a dimensão de responsabilização através da qual o eleitor pune e premia o desempenho dos governos. Parcela importante de eleitores desloca-se estrategicamente em função de um cálculo sem lealdades. A própria ascensão de Bolsonaro resultou desse grupo crucial de eleitores e de sua rejeição a uma sucessão de cataclismos; mas poderá se voltar contra ele dado o quadro de descalabro atual.
A polarização recrudescerá independentemente dos incentivos estratégicos à moderação; será tanto maior quanto mais competitivo o pleito. No entanto, o eleitor decisivo não será a parcela hiperpolarizada do eleitorado, mas o eleitor volátil. A chave da questão é se sua memória de 2018 ainda estará ativa. Minha conjectura é de que sim. (Folha de S. Paulo – 15/03/2021)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)