Maria Cristina Fernandes: O vício do Congresso

Com o sequestro do Orçamento por emendas parlamentares de valor crescente de que vale um presidente da República?

O presidente Jair Bolsonaro ganhou, mas não levou. A eleição na Câmara dos Deputados bifurca o futuro do país entre dois rumos, um ruim e o outro, péssimo. Um deriva de um presidente que comete estelionato eleitoral na aliança com o Centrão de olho na contestação do resultado de 2022. Pode fazê-lo agitando o voto impresso e atiçando a reação de praças e sargentos que cultiva nas tropas fardadas ou do bolsonarismo raiz que armou até os dentes.

As instituições que sobrarem podem impedi-lo? Sim, mas sequestrarão o país. Ou melhor, aumentarão um resgate inflacionado ao longo dos últimos vinte e poucos anos. No Congresso o processo foi inebriante. Basta ver, por exemplo, o que aconteceu com as emendas parlamentares. No início deram barato, mas viraram a dependência de uma droga crescentemente abastecida pelos impeachments, ameaçados e concretizados.

A prisão do chefe do tráfico de emendas levou à ascensão de outras lideranças, algumas que nasceram na boca, outras que a frequentam pelas beiradas e ainda aquelas que a toleram pelo poder. Com maior ou menor dependência, hoje não sobrevivem sem a droga.

O vício, por óbvio, é paulatino. Em meio aos arranjos parlamentares que se sucederam ao impeachment do primeiro eleito da Nova República e à posse de um vice desconfortável no cargo, sete parlamentares foram pegos com a botija. Os anões do Orçamento vagaram insepultos no governo Itamar Franco e permaneceram influentes até outro dia. O esquema, porém, se institucionalizou.

Os parlamentares passaram a ter uma cota no Orçamento em 1995, primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso. As emendas não eram impositivas e o presidente navegava no arrocho com uma coalizão transatlântica.

Na era Luiz Inácio Lula da Silva a insatisfação só começou com o fim da esbórnia nas estatais. Ainda por cima, o financiamento privado de campanha havia sido proibido. Os fundos eleitoral e partidário foram turbinados, mas isso não bastava.

Incomodados com o gargalo mais estreito nas estatais no governo Dilma Rousseff, o Congresso aprovou a imposição de emendas individuais no início de um mandato que já se prenunciava interrompido. Naquele ano (2015) as emendas somaram R$ 9,7 bilhões.

A imposição deu barato, mas logo os parlamentares estavam em busca de novas alegrias. Em 2016 sintetizaram as emendas de bancada. No mesmo ano a boca colocou no Palácio do Planalto um velho conselheiro. Com ele, ascendeu na Câmara o representante de uma das lideranças que tolerava a droga pelo poder. No ano seguinte, quando as conversas de Michel Temer no subsolo do Alvorada vieram à tona, as emendas individuais e de bancada somaram R$ 15,2 bilhões.

Foi quando a família brasileira, horrorizada, resolveu dar um basta nesta inebriante orgia com a eleição para a Presidência da República de um representante das beiradas do tráfico. Não faltaram avisos de que se tratava de um macomunado com os esquemas policiais que dão proteção ao crime. Sucederam-se evidências escancaradas de que o escolhido era um engodo. Com isso, surgiu, em 2019, uma oportunidade de também tornar as emendas de bancada impositivas. Gerida no atacado, a boca foi tomada pelo varejistas experientes que esta semana, finalmente, acabariam por assumir o poder.

Ninguém sabia que uma pandemia estava por vir, mas os sinais de que o varejo da boca tomaria o poder ficaram evidentes no fim de 2020 com duas outras modalidades. Foram inseridas as emendas das comissões temáticas do Orçamento e aquela que ficou conhecida como “emenda do relator” e designava plenos poderes àquele que reelabora a peça orçamentária na Comissão Mista. Este ano se tornaria um dos coordenadores da campanha do novo presidente da Câmara.

Tratava-se de um alucinógeno nunca visto na Casa. A pedida inicial foi de R$ 30 bilhões. Depois de tonitruantes negociações, ficou pela metade. Ainda assim, somadas as emendas de comissão, individuais e de bancada chegava-se quase àquele patamar: R$ 29 bilhões.

Garantidas mesmo, com execução assegurada pela Constituição e desobediência sujeita a crime de responsabilidade do presidente da República, só havia as emendas individuais e de bancada que, no Orçamento planejado para 2020, somavam R$ 15,4 bilhões. Acrescidos aí os fundos eleitoral e partidário chegava-se a R$ 18,4 bilhões. A boca, definitivamente, havia se tornado um lugar mais aprazível do que o Palácio do Planalto onde, espremendo-se todas as rubricas de investimento (excluídas as estatais) chegava-se a R$ 19,5 bilhões. O valor, ao contrário daquele das emendas, está sujeito a contigenciamento.

É o melhor dos mundos. Os parlamentares governam num regime presidencialista com execução orçamentária garantida sem responderem pelos seus gastos.

Àquela altura, a Covid-19 já estava incubada. Com a aprovação do Orçamento extra de combate à pandemia, a boca entrou no isolamento das sessões remotas, mas na vida real, foi à guerra. Moveu-se por droga de efeito multiplicador que não deixa marcas no seu usuário, a emenda “extra orçamentária”.

A verba de um mesmo ministério é prometida para três parlamentares diferentes. A promessa não é registrada oficialmente mas chega à ponta, ou seja, a Estados e municípios. Prefeitos, que se viram acossados por parlamentares a reivindicar transferências federais, foram obrigados a dividir compras de testes e medicamentos entre dois ou três fornecedores indicados por parlamentares.

A boca se refastelou. Um dos integrantes, acocorado para uma revista, mostrou que a droga não tem limite para degradar o corpo humano. Uma distribuidora do Piauí quinze dias atrás foi flagrada numa operação policial fornecendo medicamentos e notas frias ao gosto do freguês. Deputado e senador com avião é o novo normal.

As emendas que, nos anos 1990, faziam a alegria de parlamentares com R$ 1 milhão, agora somam nove dígitos. E o pior é que a festa acontece no meio do mandato. Parlamentares que usam o apurado para atender ao eleitor serão cobrados em 2022 a manter o mesmo patamar de entregas sob o risco de não se reelegerem.

O capitão alimenta a boca porque aposta que o Brasil é o baile funk no qual ele, um dia, vai poder chegar com sua tropa e instituições nada farão porque estão funcionando. No melhor das hipóteses, será derrotado numa eleição. E o vencedor, vai poder fazer o quê? (Valor Econômico – 04/02/2021)

Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor. Escreve às quintas-feiras – E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br

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