O que vivemos na eleição fora escrito nos decretos pró-armas que ignoramos
Com ironia, aqui vai um alerta de gatilho (literalmente): todos os fatos futuros narrados aqui jamais ocorrerão e as instituições estão funcionando perfeitamente. Todos os fatos pretéritos, no entanto, ocorreram. Vejo a panela em que o sapo da democracia, lentamente, cozinha. Ali está o sapo banhando-se na água do autoritarismo, como quem flutua na santa paz de um mercado e de um centrão felizes, apesar de você.
30 de outubro de 2022. Quando Jair Bolsonaro perdeu o segundo turno da eleição presidencial com 45% dos votos, apesar do apoio em segundo turno do DEM e do PSDB, de uma oposição dividida e de fake news de fraude eleitoral, as coisas começaram de fato a ficar feias. Não que elas já não estivessem feias, dadas as 400 mil mortes pela pandemia e a vacinação que deslanchou só em 2022. Carnaval em 2022, como no ano anterior, não houve.
Tal qual um tenentismo 2.0, a revolta começou entre militares. O fogo de palha estava nos 12% dos policiais militares, que uma pesquisa de julho de 2020 já mostrara serem favoráveis a prender ministros do STF e fechar o Congresso. Os outros 88%, poucos afetos à revolta, se juntaram ao movimento, mais por demandas corporativas como aumento salarial do que fé na revolução. Diversos estados viram o motim que acontecera no Ceará em fevereiro de 2020 se espalhar no seu quintal.
O bolsonarismo havia cooptado policiais, em especial depois do decreto que, no meio do carnaval de 2021, os autorizou a terem duas armas de uso restrito, e facilitou a aquisição de armamentos pesados que antes constavam da lista de produtos controlados do Exército. Mais armas em circulação e menos controle é igual a mais armas com o crime organizado e as milícias.
De início, a revolta sofreu resistência dos novos generais das polícias militares, cargo recém-criado pela nova lei orgânica das PMs, adotada no final de 2021 com a bênção do arenão de Lira e Pacheco.
Independentes por lei de seus governadores, os comandantes das PMs decidiram apoiar, com relutância, o desvario de seus subordinados. O STF tentou intervir, mas os ministros bolsonaristas na Corte pediram vista, com medo de se repetir aquele premonitório agosto de 2020 em que Bolsonaro ameaçou mandar tropas para o Supremo.
A população, embora desaprovasse em 72% a proposta de armar cidadãos, ficou com medo de protestar. Milícias armadas a serviço do poder de plantão contribuíram para tanto. A alta de 5% dos assassinatos em 2020 fora alimentada por disputas entre grupos armados, impulsionada pelas armas que migraram do mercado legal para o ilegal. Era previsível: 2020 já tinha visto um aumento de 91% no registro de armas em relação a 2019. E o ano seguinte, 2021, fora pior ainda.
O controle de armas se tornou mais raro. Conforme fora estipulado em decreto de fevereiro de 2021, quem escondia fuzis em casa era avisado, 24 horas antes, de qualquer fiscalização. Estado de direito apenas para humanos direitos com fuzil. O que se seguiu foram meses de um governo à base da bala, sangue e medo, como sempre fora.
Dezenas foram mortos Brasil afora, na balbúrdia militaresca, até que a nova presidência tomou posse, com atraso e sem a presença de Bolsonaro, que foi morar entre Atibaia e Barra da Tijuca.
Lá pelos idos de 2023, quando o golpe fracassado de 2022 esmorecer na memória, colunas de jornal dirão que era possível o STF e o Congresso terem revogado os decretos pró-armas, que a escolha não era tão difícil assim, que não faltou quem avisara que a falta de um projeto progressista de segurança nos custaria a democracia, que a frente poderia ter sido ampla, e que o presidente da república deveria ter sido investigado por genocídio.
Em 2023, no entanto, já era tarde. Quem dera estivéssemos em 2021. (Folha de S. Paulo – 15/02/2021)
Thiago Amparo, advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação