Fernando Henrique Cardoso: As difíceis escolhas

Dias difíceis, estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder

Dias difíceis, estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não posso me queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível… Para quem tem casa, como eu. E os que não as têm, ou as têm precárias, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?

O bichinho persistente, o coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos. Ricos e poderosos, tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.

Mas, não desanimemos. Se algo o tempo ensina é o velho ditado: não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe.

Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.

Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia, é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.

Digo isto não para referendar o que está ocorrendo (nem sei de fato). Mas para dizer: é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar: por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.

Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver o que estamos assistindo: ao poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isto aparece, dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.

Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero; mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito regimes autoritários, por “fazedores” que eles sejam.

Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para que) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor: sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me pela má palavra) vontade política.

E isso — a tal vontade política — é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que ocorre, pois, a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.

Não convém, portanto, apenas se recolher. Pelo contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro das leis, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.

Não escrevo para me consolar nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando além da pandemia temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais são, foram ou vierem a ser “los que mandan”.

Livremo-nos, pelo menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o. (O Globo/O Estado de S. Paulo – 07/02/2021)

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