Na coluna de ontem, citei estudo da cientista política professora Kathryn Hochstetler, hoje na London School of Economics (LSE), que aponta três razões para um presidente não terminar seu mandato na América do Sul: ausência de uma maioria parlamentar de apoio ao presidente, mobilização popular e envolvimento pessoal do chefe de governo com escândalos de corrupção.
Citei os dois primeiros para dizer que o presidente Bolsonaro estava blindado pelo acordo com o Centrão e pela pandemia de COVID-19, que impede ou dificulta manifestações populares. Não falei sobre corrupção, e muitos adeptos do governo viram nisso uma tentativa de não enfrentar uma questão da qual, dizem, Bolsonaro está livre. O próprio Bolsonaro vive dizendo que nunca foi descoberto um escândalo de corrupção em seu governo, o que verdade relativa.
A Controladoria-Geral da União (CGU) detectou em 2019 irregularidades em uma licitação de R$ 3 bilhões do Ministério da Educação ( MEC ). O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação ( FNDE ) financiaria a compra de equipamentos de informática como computadores, notebooks, projetores e lousas digitais para escolas de todo o país dentro do Programa Educação Conectada.
Relatório oficial identificou que a licitação estimou um número maior do que o necessário de computadores a serem adquiridos, usando critérios falhos e sem base técnica. A investigação constatou que 355 escolas encomendaram mais laptops do que seu número real de alunos. “O caso que mais chamou a atenção diz respeito à Escola Municipal Laura Queiroz, do município de Itabirito/MG, que registrou a demanda de 30.030 laptops educacionais, embora a escola só tenha registrada na planilha o número de 255 alunos (117,76 laptops por aluno)”, registrou a CGU em seu relatório.
Embora a maracutaia tenha sido interrompida por um órgão de fiscalização do governo, até hoje não se soube o responsável pelas deformações da licitação e o presidente do FNDE naquela altura, Carlos Alberto Decotelli, acabou nomeado ministro da Educação por Bolsonaro. Não resistiu porém às imperfeições do próprio currículo, recheado de informações falsas sobre seus diplomas e vida acadêmica.
Agora mesmo temos um escândalo que seria cômico se não fosse trágico. Uma reportagem do portal Metrópoles revelou que o governo federal adquiriu no ano passado nada menos que R$ 15 milhões em latas de leite condensado, o equivalente a mais de 2,5 milhões de latas do produto que Jair consome em seu café da manhã no Palácio do Alvorada. Outra extravagância foi gastar R$ 2,2 milhões em chicletes, R$ 8,9 milhões em bombons e R$ 31,5 milhões em refrigerantes. São números que merecem ser investigados, chamam a atenção do mais desatento dos auditores.
Além dessas questões pontuais de potencial corrupção, o presidente Jair Bolsonaro e sua família estão envolvidos em investigações sobre desvio de dinheiro público no tempo em que eram todos parlamentares. As “rachadinhas” que beneficamente o hoje senador Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual estão sendo investigadas, e o envolvimento da família com milicianos pode ter desdobramentos.
A ligação do ex-PM Fabricio Queiroz com os dois tipos de crime, e sua relação antiga com a família assombram desde o inicio o governo. Mesmo que se alegue que tecnicamente nada poderia ser feito, pois os supostos crimes foram cometidos antes de Bolsonaro ser presidente da República, algumas situações reverberaram no atual mandato, como a manobra para esconder Queiroz na casa do advogado pessoal de Bolsonaro em Atibaia; ou o uso das agências de inteligência para ações em órgãos como a Receita Federal para tentar anular as provas contra o senador. Ou a interferência pessoal do próprio presidente na Polícia Federal, com o mesmo intento.
Não é preciso, porém, que o presidente seja apanhado com a boca na botija, mas a simples demonstração de que ele está envolvido com atos corruptos, por menores que possam parecer, bastaria, num país normal, para que fosse alvo de investigações e passível de impeachment. Não se trata de matar passarinho ou dar cascudo na ema do Alvorada, como disse o ministro Paulo Guedes para tentar desmoralizar o movimento pelo impeachment. R$ 15 milhões em leite moça é de dar indigestão cívica. (O Globo – 27/01/2021)