Com a história e com os equívocos cometidos durante todos os anos das chamadas Primeira e Segunda República a vertente da qual resultou o Cidadania aprendeu que a defesa da democracia e da suas instituições é uma das principais bandeiras quando se pensa em um país com futuro estável, desenvolvido e fundamentado na grande plataforma da liberdade.
Sabemos, instituições mudam, evoluem, às vezes até retroagem em algumas conquistas seculares, porém elas exigem estabilidade assim como para viver precisamos de oxigênio. O experimentalismo institucional sempre cria obstáculos graves às nações – isso, se não se converter em tragédias abertas, com ditaduras, perseguições individuais ou de grupos, de etnias, religiosas, de pensamento.
Tivemos muitos péssimos exemplos ao longo do nosso passado republicano – as ditaduras de Vargas e a militar, com todas as suas armadilhas e atos de exceção para se formar maiorias, diminuir representatividades, calar segmentos sociais, prender, torturar. Mais recentemente, cometemos um erro ao romper com a nossa tradição política e adotar o instituto do segundo mandato, iniciado por Fernando Henrique Cardoso e que ao invés de modernizar a política no Brasil trouxe mais elementos de crise.
Agora, com o governo Bolsonaro, estamos a ver perigosos movimentos políticos envolvendo até setores de inegável vocação democrática e procurando encontrar uma espécie de “jeitinho brasileiro” para conformar maiorias eventuais ou perpetuar pessoas em cargos, ao arrepio da própria Constituição. Uma espécie de combo, três em um, onde entram a negociação antiética da indicação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, o novo ministro do Tribunal de Contas da União e a reeleição de Davi Alcolumbre à presidência do Senado – o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, consciencioso, anunciou que não aceitará a recondução.
Que interesse tem a República em dar mais um mandato a Alcolumbre, quando no Senado Federal há nomes de grande envergadura política para sucedê-lo democraticamente, e sem ferir os marcos legais? Tal movimentação só se explica por alguma negociata estranha – não me refiro a questões de ordem financeira ou relacionadas a recursos públicos – que objetiva uma espécie de golpe branco em pleno processo democrático para construir a hegemonia de um grupo político, não autorizado pelas urnas. Negociata que passa pela desmontagem da Lava-Jato, pelo arrefecimento das investigações que pesam sobre o entorno presidencial e pela leniência em relação a denúncias de corrupção.
O presidente atual do Senado Federal merece toda a nossa consideração, é um democrata, não questionamos esse fato. Entretanto, esse perfil pode ser tisnado se não colocado um fim nas manobras escuras envolvendo, principalmente, comandos do Legislativo e o Executivo. E com alguma tolerância do Judiciário.
E nesse pacote, de maneira inusitada, entra a indicação do nome do desembargador Kássio Nunes Marques para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, aberta com a aposentadoria do decano Celso de Melo. Nesse caso, não interessa o seu perfil ideológico, esse sempre resultado de maiorias que se formam na política e no Senado Federal, Casa a quem cabe a decisão final: o problema é que um ministro da mais alta corte judiciária brasileira não pode estar envolvido em adulteração de documentos e de formações acadêmicas, amplamente noticiadas pela mídia brasileira e não desmentidas. Apagar rastros não elide o perfil ético, este colocado sob suspeita.
Com base nesse entendimento, a Executiva Nacional do Cidadania, no dia 8 de outubro, decidiu por unanimidade dos participantes da reunião colocar-se contrária à recondução dos atuais presidentes das duas Casas do Congresso e também contra a indicação do nome anunciado para o STF. Com essa posição, estamos em sintonia com a opinião pública, com a Constituição, com os princípios mais gerais do partido, com a ética e as boas práticas políticas.
Há regras para se alterar princípios constitucionais e leis infraconstitucionais, desde que atendidos os respectivos quóruns de votação no Congresso Nacional. Entretanto, mesmo que maiorias possam ser formadas de última hora, elas não perderiam o seu carácter casuístico.
A República não aceita atalhos e convescotes! (Artigo publicado originalmente no Blog Reformistas em 15.10.2020)
Roberto Freire, advogado e ex-deputado federal, é presidente nacional do Cidadania