Ao menos desde 2017, quando foi publicada a edição brasileira do Dicionário Gramsciano, vive-se um momento de grande interesse pelo pensamento do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
Parte disso é um efeito colateral da “guerra cultural” martelada pela extrema-direita, que invariavelmente trata Gramsci como um de seus inimigos principais. O fundamental, porém, deve-se ao trabalho dos inúmeros grupos de estudiosos que se formaram ao longo dos anos em diversas áreas acadêmicas.
Gramsci, a rigor, nunca saiu de cena no Brasil, país em que sua difusão está entre as maiores do mundo. Nos anos 1960, a Civilização Brasileira foi pioneira ao editar os primeiros escritos gramscianos entre nós. Mais tarde, a partir de 1999, a mesma editora publicou os Cadernos do Cárcere, uma caprichada tradução que demarcou um novo campo para os estudos marxistas e tornou conhecida a grandiosidade da reflexão teórica de Gramsci.
Nas duas décadas que se seguiram à publicação dos Cadernos no Brasil, o interesse por Gramsci só fez crescer. Textos esparsos, coletâneas e pesquisas mais estruturadas – bem como uma edição de Gramsci em Quadrinhos (Veneta, 2019) — começaram a circular em sequência, formando um volume que chama atenção, até por coincidir com um período não propriamente favorável ao marxismo ou às esquerdas. É uma prova de vitalidade e relevância, que se expressa com clareza nos verbetes do Dicionário.
2020 mantém esse padrão. A editora Boitempo inaugurou sua coleção Escritos Gramscianos com uma reunião de artigos escritos por Gramsci em 1917, Odeio os Indiferentes. Embora não integrem o núcleo fundamental de sua reflexão, os textos daquele ano emblemático – a Revolução Russa batia às portas – mostram um jovem intelectual convencido de que todos tinham de se engajar em causas grandiosas, justas e igualitárias. Apaixonado pela ideia de revolução, Gramsci mergulha na militância socialista. Sua bandeira é a luta pela dignidade dos trabalhadores, o desprezo por aqueles que “não tomam partido” e vivem como “homens nascidos apenas para consumir alimentos”, aprisionados a seus mundinhos provincianos. É um Gramsci preocupado com propaganda e militância. Um entusiasta da Revolução Russa, compreendida por ele como destinada a libertar as massas de sua condição subalterna e inaugurar uma nova era universal.
Processa-se ali uma inflexão, que levará Gramsci ao Partido Comunista e à luta antifascista, em nome da qual será preso e condenado pelo regime de Mussolini. A passionalidade de 1917 seria, com o tempo, temperada pela luta política, a convivência com a Internacional Comunista e os anos no cárcere (1926-1937), durante os quais analisará a derrota do movimento revolucionário e elaborará uma sofisticada teoria da política e do Estado, na qual lugar de destaque será dado aos intelectuais e à educação, o que não era comum entre os marxistas.
A compreensão dessa trajetória requer que se leve em conta as circunstâncias históricas, os “contextos”. O volume Gramsci no seu tempo chegou à segunda edição propondo-se a ser um esforço para inserir Gramsci na história vivida, em seus dramas pessoais e em seu relacionamento com o movimento comunista da época. Trata-se de uma coletânea que complementa os seminais trabalhos de Giuseppe Vacca, Vida e Pensamento de Antonio Gramsci. 1926-1937, e de Leonardo Rapone, O Jovem Gramsci: Cinco Anos que Parecem Séculos, 1914-1919, ambos lançados anos atrás pela Contraponto/FAP. Na mesma direção vai Antonio Gramsci, o Homem Filósofo, de Gianni Fresu, fruto de uma alentada pesquisa sobre a evolução política e intelectual de Gramsci, suas batalhas pessoais e teóricas travadas sem dogmas ou esquemas pré-concebidos. Fresu enfatiza que o legado gramsciano “desenvolve-se num quadro de profunda continuidade”, o que não significa que Gramsci permaneça sempre idêntico, mas sim que “suas questões e suas conclusões ficam mais complexas, tomam novas direções” e modificam seus pressupostos iniciais. O teórico dos Cadernos não abandona os ideais revolucionários e a visão de mundo da juventude: procede por um movimento de superação, que incorpora o que antes formulara e o projeta em um plano mais sofisticado.
Do conjunto desses livros emerge um Gramsci atento à sinuosidade da história, não dogmático, livre de armaduras ideológicas ou da “obediência” cega a diretrizes partidárias. Uma figura de intelectual bem diferente daquela que a extrema-direita apresenta e que também colide com o doutrinarismo das esquerdas. Em sua trajetória de diálogo com os dilemas da época em que viveu, Gramsci elaborou um marxismo maduro, forjado na dialética histórica e na busca pelas fontes que fazem a humanidade ser como é. (O Estado de S. Paulo – 19/09/2020)
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp e autor do livro ‘As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporãneo’ (Contraponto/FAP)