Há muito se debate o porquê e o como do contrato social, entendido como as normas que regem a vida em sociedade. Desde Sócrates, pelo menos, passando por Platão, Hobbes, Locke e Rousseau, se analisa porque faz sentido para as pessoas abrirem mão de parte de sua liberdade, permitindo que se estabeleçam leis, governos que as façam cumprir, e tributos para financiar a máquina pública e suas políticas.
A resposta é bastante clara: o contrato social pode produzir uma melhor qualidade de vida. É melhor abrir mão da liberdade de poder matar o outro, de fazer barulho depois das 22 horas, ou de jogar seu lixo na rua, se as mesmas regras valerem para todo mundo. Em termos econômicos, o contrato social também pode facilitar a acumulação de capital, físico e humano, e um grau elevado de especialização, gerando padrões de vida superiores aos que seria possível obter de outra forma.
Não há um único modelo de contrato social, nem um que seja superior a todos os demais. Por isso, tem gente que migra de um contrato social para outro, dentro de um mesmo país, ou entre países. E, mesmo nos EUA, para onde muita gente migra, se questiona se seu contrato social não foi construído para favorecer os homens brancos, prejudicando as mulheres e as minorias raciais. O contrato social é, portanto, algo vivo, que pode ser aperfeiçoado.
Nosso atual contrato social é o escrito na Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, assim chamada por sua preocupação em garantir direitos para o cidadão e impor obrigações ao Estado em servi-lo. Por isso, e por ter evitado rupturas políticas – essa foi a sexta constituição em menos de 100 anos -, ela é bem avaliada por vários analistas.
O contrato social que ela traduz foi, porém, mal-sucedido em gerar crescimento econômico. Nos 31 anos decorridos desde a sua promulgação, o PIB per capita brasileiro cresceu em média 0,8% ao ano (a.a.), metade do observado nas economias avançadas (1,6% a.a.) e menos de um quarto do registrado na média das emergentes (3,5% a.a.). E não foi por falta de ajustes em nosso contrato social: ao todo, já tivemos 109 emendas à Constituição de 1988.
Talvez a principal razão para isso, ainda que não a única, é que o contrato social da Constituição de 1988, e emendas posteriores, produziu uma equação fiscal insustentável. Samuel Pessoa, meu colega de Ibre/FGV, observa que esse contrato social levou à adoção de amplos programas de bem estar e segurança social, que geram elevados gastos públicos (bit.ly/3mGdMY3). Ao mesmo tempo, se preservaram os benefícios existentes para os grupos sociais mais favorecidos, de forma que se criaram obrigações novas sem descontinuar as antigas.
Desde então, vimos tentando equilibrar essa equação fiscal. Fizemos isso primeiro com a hiperinflação, depois via aumento da dívida em dólar, depois elevando a carga tributária e, mais recentemente, expandindo a dívida pública e contendo o investimento público. Ocorre que é inviável continuar aumentando a dívida pública no ritmo atual, em especial depois do salto que essa deu com a pandemia. A dificuldade do Tesouro em emitir títulos longos a custo aceitável já mostra o tamanho do problema. Como a sociedade também não quer elevar a carga tributária, já mais pesada que em outros emergentes, sobraria a volta da hiperinflação.
O Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95) é uma tentativa de organizar uma saída mais favorável para a comunidade brasileira. Ao colocar um teto em termos reais ao total das despesas públicas primárias, ele permitiu reduzir o risco país e a taxa de juros – e, portanto, o custo da dívida. Com isso, deu tempo aos brasileiros para redefinir seu contrato social, para equilibrar meios e obrigações do Estado. O que até aconteceu, em parte, com a reforma da Previdência.
Porém, a pandemia e a lógica político-eleitoral do nosso contrato social renovaram a pressão por mais gastos públicos, via investimentos e novos programas de transferência de renda. O problema é que aumentar gastos, sem reduzir outros, levará ao rompimento do teto, jogará o risco país e os juros para cima, e tornará a situação fiscal ainda mais insustentável. Ou seja, nosso contrato social ficará ainda mais disfuncional da ótica do desenvolvimento econômico e, diria eu, do bem estar social.
Se o Brasil quer ter um contrato social que faça o país crescer e gerar empregos de qualidade, simplesmente acabar com o teto é o caminho errado. Se for para mexer na Constituição, melhor fazê-lo para tornar o teto viável, em vez de para acabar com ele. Ou então aumentar os impostos para financiar mais gastos.
O Ministério da Economia já disse o que faria se fosse ele a reescrever a Constituição: reduziria salários dos funcionários e aposentadorias em geral, voltaria com a CPMF, redirecionaria transferências de renda, privatizaria estatais etc. O presidente, porém, já disse não a tudo isso. É uma decisão política, não técnica, e cabe mesmo a ele propor uma solução. Qual será? É importante não esperar demais, pois a sociedade vai querer discuti-la e o problema segue aumentando. (Valor Econômico – 22/09/2020)
Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ