Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro e Trump em busca do inimigo externo

Primeiro e maior fórum mundial desde o início da pandemia, a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas revelou como a covid-19 não apenas moldou a visão de mundo de chefes de Estado como também a maneira como cada um pretende que a reação à doença seja vista, principalmente, em seu próprio país.

As falas, porém, não se limitaram à projeção de um caldo multinacional de quimeras. Confrontados, os discursos de Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Emmanuel Macron (França), Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro deixam claro que apenas os dois últimos fizeram da pandemia a deixa para a fantasia do inimigo externo. Talvez não seja coincidência que Estados Unidos e Brasil sejam aqueles que, neste grupo, registram tanto o maior número absoluto quanto proporcional de mortos pela doença.

Dos cinco chefes de Estado, Xi Jinping foi quem mais falou da pandemia. Anteviu o que seria o discurso de Trump, que o antecedeu com 20 menções à China, mais do que o dobro de todas as referências à doença, às suas consequências e às providências tomadas.

Ante um Trump que resume o drama mais devastador da humanidade desde a criação da ONU ao “vírus chinês”, Xi citou 13 vezes a covid-19, doença que teve uma única menção no discurso do presidente americano, e nove, o vírus, a despeito da nacionalidade imputada. E propagandeou a “diplomacia da vacina” para substituir a das máscaras e expurgar o espectro da culpa chinesa.

Sem enfrentar as mesmas imputações de Xi, Putin foi pelo mesmo rumo. As menções do presidente russo à doença superaram, com folga, todas as suas demais obsessões sobre segurança cibernética, armas químicas e nucleares e fronteiras. Se deixou explícita uma disputa ali foi aquela com a China pela diplomacia da vacina. Um (Xi) tratou dela como bem público e se comprometeu a dar prioridade de acesso a países em desenvolvimento e o outro (Putin), ofereceu-a de graça aos funcionários das Nações Unidas.

É bem verdade que são dois chefes de Estado que não enfrentam esse problema chamado eleição. Podem se dar ao luxo de exibir altruísmo ao mundo e a seus nacionais num contraponto a um presidente, como Trump, que não baixa as armas nem sob uma pandemia. Tem alguma outra doença em curso, além da covid-19, a assolar a humanidade quando o candidato à reeleição na mais rica democracia do mundo precisa contornar uma doença que já tirou a vida de 200 mil cidadãos para ganhar a disputa.

Uma patologia da mesma família atinge o Brasil. O chefe de Estado, mesmo não estando em campanha eleitoral, precisa fazer igual contorcionismo para falar sobre a doença que levou seu país, com 138 mil mortos, a ultrapassar, em proporção de vítimas, os EUA de sua inspiração.

Não faltam menções apenas à doença no discurso de Trump e Bolsonaro. Inexistem referências à pobreza ou à desigualdade. Talvez não precisassem imitar Macron que, em seu discurso quilométrico (sete vezes maior do que o de Trump e quatro vezes maior que o de Bolsonaro), fez 30 referências à doença, e nove aos seus efeitos sobre pobreza e desigualdade.

Trump, no entanto, limitou-se a dizer que produziu um número recorde de ventiladores, reduziu o índice de fatalidade e está empenhado na busca por uma vacina. No resto do discurso, a doença foi apenas um trampolim para culpar a China e a Organização Mundial de Saúde. Em plena pandemia, achou por bem informar ao distinto público que os EUA gastaram U$ 2,5 trilhões nos últimos quatro anos (mais do que as despesas feitas para o combate à doença e a seus efeitos) em defesa: “Temos as Forças Armadas mais poderosas do mundo”.

Bolsonaro seguiu a mesma trilha. Fez quatro menções aos militares e uma única – equivocada – sobre médicos e enfermeiras que estão no campo de batalha da pandemia (“[O governo] estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”).

Quem assistiu ao discurso de Bolsonaro não tomou conhecimento sobre iniciativas que poderiam ter contido a doença, como, por exemplo, uma testagem maciça, mas foi informado da presença militar em Roraima que, dias antes, servira de palanque para o secretário de Estado, Mike Pompeo, se dirigir aos eleitores anti-Maduro da Flórida.

Em 2019 os militares tinham ficado ausentes do tresloucado discurso com o qual Bolsonaro se apresentou ao mundo numa guerra santa contra o socialismo de Fidel Castro. Desta vez, o comando de caça aos comunistas ficou de fora – assim como do discurso de Trump – e os militares ocuparam o espaço.

Saem os socialistas e entram aqueles que ameaçam a soberania brasileira na Amazônia. O tema, que tinha ficado ausente do discurso de 2019, teve, desta vez, sete menções – todas contestadas por quem entende de floresta.

O peso que deu ao tema só foi comparável ao de Xi, sendo que o presidente chinês se comprometeu com metas ousadas de redução de gases-estufa enquanto Bolsonaro só mostrou compromisso com a desinformação. Nem polemizar conseguiu. Ao contrário de 2019, quando Macron fez do clima e da Amazônia seu cavalo de batalha, com mais de 20 menções ao tema, desta vez o presidente francês citou os embaraços climáticos de passagem e, com a arapuca já armada no acordo da União Europeia com o Mercosul, passou reto diante da Amazônia.

O discurso soberanista não devolve as onças-pintadas ou os milhares de hectares queimados nem contém a ameaça sobre centros de excelência na produção de dados sobre as florestas brasileiras. Sem defesa para a covid-19, no entanto, foi o que restou a Bolsonaro.

A aposta de Trump de que o “vírus chinês” o eximirá de suas responsabilidades será testada em pouco mais de um mês. A de Bolsonaro ainda tardará, mas esquenta os motores contra as “instituições internacionais” de preservação ambiental. Busca um inimigo externo para a dificuldade de o Brasil atrair capital e gerar emprego. Na tentativa de copiar Trump, mimetiza Nicolás Maduro.

Ainda que tenha maioria parlamentar, dois ministros a mais no Supremo e avance sobre instituições de controle, o presidente pode acabar, como Maduro, só com seus fardados na batalha. A palavra “democracia”, mencionada até por Xi e Putin, não apareceu na fala de Bolsonaro – nem na de Trump. (Valor Econômico – 24/09/2020)

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