Reajuste a servidores não traria custo de R$ 120 bilhões, como diz o governo
Não é novidade para ninguém que a intensa polarização da política brasileira coloca em risco a nossa democracia. O que talvez não esteja tão evidente é que essa guerra de narrativas, cada vez mais distante da realidade, está, na prática, distorcendo a tomada de decisão dos representantes políticos. Um exemplo disso foi o debate que acompanhou a votação do veto presidencial 17/2020 na semana passada.
Em maio, o senador Antonio Anastasia (PSD-MG) apresentou o projeto de lei complementar 39/2020, que dispunha sobre medidas financeiras para socorrer estados e municípios durante a pandemia. O projeto condicionava o recebimento de recursos, entre outras coisas, ao congelamento dos salários dos servidores públicos até 2021.
Contudo, havia uma exceção: servidores essenciais à pandemia, como profissionais de saúde, segurança, educação e limpeza pública, não poderiam receber aumentos financiados pelos recursos do governo federal, mas poderiam sim ter seus salários reajustados de acordo com a discricionariedade de seus estados e municípios. Na época, o ministro Paulo Guedes (Economia) se pronunciou sobre a importância de garantir o reajuste aos servidores que estão na linha de frente, e o governo orientou suas bancadas a votarem favoravelmente ao texto, o que foi aprovado nas duas Casas.
No entanto, após a aprovação pelo Senado e pela Câmara dos Deputados por ampla maioria, o tema veio de novo à tona na medida em que o presidente Jair Bolsonaro voltou atrás e vetou a excepcionalidade concedida aos servidores essenciais. Para justificar o veto, o governo mudou sua narrativa e disse que o reajuste salarial traria um custo de R$ 120 bilhões aos cofres públicos.
Poucas pessoas se perguntaram se o valor estava correto ou não. Mas, quem fez os cálculos, logo percebeu que, se todos os estados e municípios decidissem reajustar os salários de todas as categorias, ainda assim, ao longo de um ano e meio, o impacto financeiro seria metade do valor alardeado pelo governo. Em relação ao nível federal, as contas apontaram para um impacto de, no máximo, R$ 10 bilhões —ou seja, um terço dos R$ 30 bilhões que o governo divulgou inicialmente para essa rubrica.
Sendo coerente com nossa primeira votação e com o acordo construído, votamos contrários ao veto do presidente. No Senado, o veto foi derrubado. No dia seguinte, um noticiário apresentou nominalmente todos os senadores que haviam votado de forma contrária ao veto.
A imprensa validou os números inflados do governo, e a narrativa do ministro Guedes de que esse era “um crime contra o país” imperou. Faltou compromisso com os fatos. Na Câmara, a maioria dos deputados, por convencimento ou pragmatismo, votou pela manutenção do veto.
Passamos dias discutindo o reajuste inflacionário do gari ou do professor, mas a reforma administrativa, que, de fato, tem o potencial de barrar privilégios e gerar um alto impacto econômico, sequer foi enviada pelo Executivo. Projetos que combatem os chamados supersalários, inconstitucionais e imorais, e a PEC 147/2019, conhecida como “PEC dos Penduricalhos”, que prevê o fim dos auxílios para quem recebe mais de um quarto do salário do ministro do Supremo Tribunal Federal (aproximadamente R$ 10 mil hoje), não são pautados. Enquanto nos distrairmos com essas armadilhas espetaculosas, não transformaremos a realidade fiscal e, muito menos, social do país.
O que aconteceu na semana passada é uma fotografia triste da guerra de narrativas que vem tomando conta da política brasileira. Parlamento, imprensa e sociedade organizada são pilares importantíssimos da nossa democracia e, mais do que nunca, precisamos todos reafirmar o nosso compromisso com debates qualificados e honestos. Desse compromisso dependem o futuro da nossa democracia e do nosso país. (Folha de S. Paulo – 27/08/2020)
Tabata Amaral, deputada federal (PDT-SP) e colunista da Folha
Alessandro Vieira, senador da República (Cidadania-SE)
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/veto-mantido-vitoria-da-desinformacao.shtml