Pobreza é um fator de risco para o desenvolvimento do cérebro infantil
Ontem [24/08] celebramos no Brasil o Dia da Infância. Nos próximos dias, o governo federal deve anunciar programas que são essenciais para estes brasileiros, incluindo o aguardado Renda Brasil. Ele deve substituir o Bolsa Família, programa que ajuda com R$1,39 por dia as crianças que vivem abaixo da linha da pobreza. A relativa indiferença do Estado brasileiro com a infância contrasta com a ênfase de países desenvolvidos. Nesse sentido, poucas coisas são mais emblemáticas do que a Finlândia e sua caixa de papelão entregue para todos os pais de recém-nascidos.
A caixa ganhou notoriedade internacional pelo seu uso como berço alternativo, permitindo que bebês dormissem próximos aos pais em uma superfície estável. A distribuição, desde antes da 2ª Guerra, contribuiu para a redução da mortalidade infantil em um país que era então pobre. Atualmente, a caixa de papelão é popular na verdade pelo conteúdo que vem dentro dela: dezenas de itens para as necessidades dos recém-nascidos em seus primeiros meses – de roupas adequadas a produtos de higiene, passando pelo primeiro livro.
A caixa distribuída universalmente é vista como um símbolo da valorização de cada criança pelo Estado e um símbolo de igualdade, e passou a ser adotada recentemente no estado americano de Nova Jersey, no Chile, na Irlanda e na Escócia (“para que toda criança, independentemente das circunstâncias, tenha o melhor começo na vida”). Os desafios da primeira infância – os anos iniciais da vida – são cada vez mais contemplados por governos do mundo todo seguindo uma literatura científica robusta sobre os resultados expressivos de intervenções nessa fase.
Como mostram pesquisadores internacionais na The Lancet, os primeiros anos de vida são particularmente importantes porque o desenvolvimento do cérebro ocorre em vários domínios – e a pobreza é um fator de risco para este desenvolvimento. Problemas de nutrição, estresse, estimulação e interação social afetam a estrutura e funcionamento do cérebro, com consequências duradouras para o cognitivo e o emocional.
O desenvolvimento infantil é preditor do desempenho na escola e no mercado de trabalho – não à toa os pesquisadores ressaltam que a indiferença com a primeira infância dos mais pobres afeta o próprio “desenvolvimento nacional”.
Economistas se interessam cada vez mais pelo tema. Aqui é influente o trabalho do Prêmio Nobel James Heckman: embora tenha sido desafiado recentemente na academia, seu eixo central se mantém. Como explicam Naercio Menezes e Bruno Komatsu: “O desenvolvimento infantil é um processo ordenado de obtenção de habilidades interdependentes e nos primeiros mil dias de vida as crianças adquirem capacidades que servirão como fundamento para o aprendizado e aquisição de habilidades em fases posteriores da vida, até a adolescência e a fase adulta.” Pode, assim, quebrar o ciclo de pobreza que passa de uma geração para a próxima.
Os economistas propõem uma reformulação do Bolsa Família para que crianças de até 6 anos recebam R$ 800, a ser custeado com tributação maior sobre os mais ricos, reduzindo a pobreza no grupo a um terço do que é hoje. É este o teor do Projeto de Lei Complementar no 213, da senadora Eliziane Gama, que cria a renda básica da primeira infância.
Nesta semana o governo apresenta a sua proposta, o Renda Brasil. Ele deve trazer um bem-vindo aumento nos valores e no público do Bolsa Família, mas que pode ser considerado modesto na esteira do auxílio emergencial. Outras iniciativas importantes para a primeira infância neste pacote incluiriam a expansão do atendimento em creches, inclusive usando as particulares; a ampliação do Criança Feliz, uma iniciativa de visitação domiciliar com enorme potencial; e programas de emprego para os pais – sobre representados nas taxas de desemprego e informalidade.
O que a ciência tem mostrado é que toda a sociedade se beneficia de investimentos na primeira infância, tendo como retorno adultos mais prósperos no mundo do trabalho. Para usar a frase do ativista queniano Kennedy Odede, “o talento é universal, mas as oportunidades não são”. Que as reformas na rede de proteção social levem o Brasil para mais perto da caixa de papelão. (O Estado de S. Paulo – 25/08/2020)
PEDRO FERNANDO NERY, DOUTOR EM ECONOMIA