NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
As eleições nos Estados Unidos estão sendo vistas como uma encruzilhada do destino do mundo, na qual o “sonho americano” está em risco e, com ele, a democracia em várias partes do planeta. O presidente Donald Trump, que disputa a reeleição, defende teses regressivas em relação à democracia norte-americana e um nacionalismo que contrasta com o globalismo que sempre pautou a atuação da Casa Branca na cena mundial; não por acaso, o ex-presidente Barack Obama, num pronunciamento inédito para quem já comandou o país, em apoio a Joe Biden na convenção democrata, acusou Trump de ser uma ameaça à democracia e aos direitos humanos.
O sonho americano é a grande invenção política da Independência dos Estados Unidos. Seu ethos sintetiza o comportamento social e cultural dos norte-americanos ao longo de sua história. Liberdade, segurança, oportunidades iguais e justas para o sucesso pessoal, bem-estar para as famílias e perspectivas de futuro ainda melhor para as crianças, graças ao trabalho duro, numa sociedade capaz de superar qualquer obstáculo e na qual qualquer um pode chegar ao topo. Essa é a ideia-força do The American Dream. A crise de 2008 e as mudanças em curso no mundo, com a emergência da China como grande concorrente dos Estados Unidos, porém, frustraram os norte-americanos.
O sonho americano, sem dúvida, foi ressignificado pela eleição de Barack Obama, mas foi amesquinhado após a eleição de Trump, que pôs a imagem dos Estados Unidos de cabeça para baixo, como num espelho côncavo. Em antropologia, o ethos é constituído pelos traços e modos de comportamento que formam o caráter e a identidade de um povo, ou seja, uma identidade social. Do ethos deriva a ética, isto é, as normas e regras de conduta que devem ser observadas pelos membros de uma sociedade.
Trump subverte o ethos do sonho americano, com uma narrativa na qual exalta o pior e não o melhor da sociedade e da história dos Estados Unidos. O problema é que não está sozinho no mundo, sua narrativa negacionista e reacionária, que reforça as autocracias, estimula retrocessos na ordem política de muitos países democráticos, inclusive, o Brasil.
Americanismo
Do ponto de vista objetivo, a força do americanismo estava diretamente associada ao fordismo. Forma mais avançada de organização da produção, o fordismo teve impacto mundial e serviu até de inspiração para o modelo soviético, cujo Estado reproduzia a estrutura organizacional da grande indústria mecanizada, assim como o funcionamento do partido comunista. O fordismo nasceu na fábrica e se expandiu para toda a sociedade americana; se projetou mundo afora depois da II Guerra Mundial. Foi a base material do americanismo, um conjunto de ideias de caráter ideológico, político, cultural e comportamental. As ideias puritanas tiveram um papel fundamental na organização do trabalho e da vida doméstica das famílias norte-americanas e estão na gênese da formação e consolidação das instituições da democracia americana, mas foram suplantadas pelo americanismo, que exacerbou a liberdade individual.
No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo, o que gera muitas polêmicas nos meios acadêmicos. Essa contradição estaria no DNA das nossas jabuticabas institucionais. Historicamente, a influência do americanismo foi determinante para o nosso processo de modernização conservadora. A influência de Trump, porém, como no espelho côncavo, é a negação do sonho americano e uma espécie de americanismo do mal para a democracia brasileira, pois reforça o viés autoritário do governo Bolsonaro. Se o que é bom para os Estados Unidos for bom para o Brasil, perdão pelo trocadilho, melhor torcer para o democrata Joe Biden. (Correio Braziliense – 28/08/2020)