José de Souza Martins: O outro lado da moeda

O Banco Central anunciou uma nova cédula, no valor nominal de R$ 200,00, que se agregará ao elenco das cédulas existentes. Terá como efígie o lobo-guará, nova personagem do nosso zoológico monetário.

Num momento de crise das grandes compras e dos grandes estabelecimentos do varejo, os pequenos pagamentos em dinheiro pedem numerário miúdo nas compras cotidianas.

Os inventores de dinheiro têm razões para o lançamento agora da nova cédula. Uma funcionária da instituição explicou que não saiu ela do bolso do colete de ninguém, nem foi inventada em cima da hora.

Há regras de Estado para isso e até regras internacionais que o Brasil leva em conta antes de fazer um lançamento desses. A nota de R$ 200 vem sendo planejada e desenhada há muito, envolvendo um certo número de profissionais do dinheiro, como os artistas que vão cuidar da cara e da cor que terá. Tudo corre como segredo de Estado e cercado de mistério.

Mas os fazedores de dinheiro, provavelmente, não sabem qual é o outro lado da moeda, o lado invisível que os olhos da cultura popular podem ver e cujo mistério pode-se por meio dela decifrar. Um outro e complicado mundo que as teorias econômicas não explicam, só a antropologia da circunstância popular do dinheiro, suas definições e suas concepções mágicas. No entendimento dos que dele carecem para viver, na mão dos quais se tornará dinheiro vivo.

Sei de um único economista que se interessou pelos mistérios do dinheiro no marco da teoria econômica. Foi Sir Dennis Robertson (1890-1963), autor de um imaginativo livro sobre o assunto, publicado em português com o título de “A Moeda”. Ele foi professor da Universidade de Cambridge.

Cada capítulo é precedido por uma significativa epígrafe extraída de uma das obras mais conhecidas de Lewis Carroll (1832-1898), que é “Alice Através do Espelho”. Uma obra-prima da literatura do absurdo.

Religioso da Igreja Anglicana, Carroll foi também poeta, fotógrafo e professor de matemática da Universidade Oxford. De sua obra extraiu Robertson alusões ao avesso do real, do tipo “neste país, quanto mais se caminha mais longe se fica”.

Há no dinheiro uma dimensão sociológica, como nas epígrafes reconheceu Robertson. O dinheiro é relacional, não tem poder próprio. Depende da trama de relações visíveis e, também, das ocultas que lhe dão sentido na circulação.

Aqui no Brasil, uma das contradições do dinheiro, nas invisibilidades que abriga, materializou-se nos anos 1980, quando o Banco Central aceitou incluir nas notas uma alusão religiosa: “Deus seja louvado”. Era pífia cópia do “In God we trust”, do dólar americano.

Mas tratar o dinheiro como veículo de uma manifestação de fé, o que é ilegal, conflita com seus maus usos, na corrupção, nas práticas imorais e naquilo que nega os valores da identidade nacional e do que é propriamente a condição humana. O dinheiro é cada vez mais instrumento de não fazer o bem e o necessário.

Um estudo sobre a cultura popular do dinheiro na América do Sul foi feito pelo antropólogo australiano Michael Taussig. Um dos seus usos, observado entre camponeses de um dos países da região, foi o relativo a práticas mágicas decorrentes da associação do dinheiro a satanás.

O autor identificou o costume de “batizar” o dinheiro. Em cerimônias de batizado, o feiticeiro furtivamente expõe a moeda à bênção sacramental, roubando o batismo da criança: o dinheiro se torna o batizando. Fica, assim, dotado de uma força mágica derivada do sagrado para uso no serviço de coisas e causas do demônio.

No Brasil, quando de uma pesquisa que fazia na Amazônia, no Acre, um trabalhador rural foi assassinado. Contaram-me que, no velório, colocaram uma moeda sob a língua do morto e um saquinho de sal no caixão, aos pés do falecido. A crença era a de que, assim, o assassino seria atraído ao local do velório e seria o primeiro a entrar no recinto após o rito. O homem que entrou foi pouco depois linchado numa das estradas da região. Por coincidência, ele era o maior suspeito do crime.

Na cultura dos pobres são frequentes as indicações de desconfiança em relação a malignidade oculta no dinheiro de que carecem. O que se explica por que nela o dinheiro insuficiente é expressão de necessidades sociais e de injustiças.

A nota de R$ 200 é mais do que muitos brasileiros conseguem num mês. Já nasce como símbolo de injustiça social. Representa a alienação dos poderosos que hoje governam a riqueza, mas não a sociedade.

Neste momento, variantes populares dessa consciência já estão surgindo. A bicada da ema no presidente vem provocando a sugestão de que na nova nota se coloque a imagem da ema vingadora ou a da cadela vira-lata caramelo, moradora de rua, e não a do apolítico lobo-guará. (Valor Econômico – 14/08/2020)

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Fronteira – A degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

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