Cristovam Buarque – Furtado: além do centenário

Dos grandes autores lembramos o que escreveram, dos maiores, adotamos o pensamento, mesmo sem saber o nome. Nós pensamos com base nas ideias de Spinoza, Erasmo, Adam Smith, Descartes, Bentham, Hume, Aristóteles, Keynes, Arendt e outros que romperam posições do passado e inventaram formas de entender a realidade. Ainda quem nunca ouviu falar neles, pensa e age em função das ideias que eles construíram.

Alguns brasileiros nos explicaram “de onde vem”, “como é”, “para onde deve ir” o Brasil. Entre outros, é possível citar Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira. Cada um teve sua influência na formação da mente brasileira: como nós entendemos nosso país e o mundo ao redor.

Desses, Celso Furtado tem influência decisiva para explicar o “de onde viemos”, “por que somos subdesenvolvidos”, quais os “entraves ao nosso desenvolvimento”, “como nos desenvolvermos”. Ele também nos alertou para os riscos do progresso.

Antes do livro Formação Econômica do Brasil, víamos a nossa história como sucessão de fatos, especialmente políticos. Graças a Celso Furtado, passamos a entender como a história avançou: a lógica e as forças que nos empurraram. Graças também a ele, entendemos por que esbarramos em vez de avançar. Seus livros Desenvolvimento e subdesenvolvimento, Teoria e política do desenvolvimento econômico, Dialética do desenvolvimento são básicos para entender como certas economias se desenvolvem e porque outras ficam estagnadas.

Mas ele não foi apenas analista, foi também formulador de caminhos. Devemos a ele os documentos básicos de estratégias para o desenvolvimento do Brasil, como o Plano Trienal, e para superar a tragédia da pobreza e da desigualdade regional. Foi formulador da Sudene e homem de ação. A engenharia política para aprovar no Congresso as leis que serviram de base à criação da Sudene e dos instrumentos de incentivos fiscais foi obra de genialidade conceitual e de articulação política. Tal como Nabuco nos dias de maio de 1888 para aprovar a Lei Áurea. Passados anos, foi Celso Furtado quem, no livro O mito do desenvolvimento, nos trouxe a percepção dos limites do desenvolvimento, tanto quanto Nabuco nos lembrou que a Abolição não se completaria sem reforma agrária e educação.

Por tudo isso, 100 anos depois de seu nascimento, o pensamento e o exemplo de Celso Furtado estão vivos nas lembranças e homenagens que os historiadores, economistas e políticos fazem à sua obra. Vivo também em milhões de brasileiros que, sem saber, usam conceitos e palavras que ele criou, sonham para o Nordeste e para o Brasil rumos que ele definiu, temem resultados negativos para os quais ele alertou. Raros intelectuais e homenageados são lembrados tantos anos depois de sua obra por quem o estudou e por quem pensa como ele ensinou, mesmo sem conhecer a obra.

A maior homenagem a ele não é, entretanto, lembrar a importância da obra, mas ter a consciência de como ele nos faz falta em um momento em que o Brasil vive em transe, não em transição, sem coesão, nem rumo. Cometemos muitos equívocos nas duas décadas sem Celso. Uma das maiores foi burocratizarmos e amarrarmos o pensamento. Burocratizamos nas carreiras universitárias e amarramos em siglas partidárias. Deixamos de usar plenamente a liberdade criadora, paramos de ousar, nos apegamos às ideias do passado como se fossem camisas de força de uma lucidez superada pela realidade. Ficamos críticos ou bajuladores, não analistas e intérpretes inovadores.

A maior lição de Celso Furtado foi o exemplo de pensar com rigor analítico e com liberdade imaginativa, sem amarras, sem líderes e sem siglas partidárias. Ninguém amarrou o pensamento de Celso Furtado, ninguém lhe tolheu a imaginação e todos reconhecem seu rigor. É nisso que precisamos seguir avançando no que ele formulou. Seu pensamento um dia evoluirá graças aos que lhe seguirem o exemplo, tanto quanto ele fez avançar o pensamento de seus mestres.

Olhando para a própria obra e para os desafios de hoje, a maior homenagem ao Celso, nos seus 100 anos, é agradecer pelos pilares intelectuais que ele nos deu nas ideias e no caráter. E pensar novas ideias e novos instrumentos para enfrentar os novos desafios. Agir como ele agiria: pensando além do que ele nos ensinou. (Correio Braziliense – 11/08/2020)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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