Pedro Fernando Nery: O ministro endógeno

Com o aniversário de Marco Aurélio Mello neste mês, entramos no seu ano final no Supremo Tribunal Federal (STF). Em 12 meses, o ministro completará os 75 anos da aposentadoria compulsória. Sua saída mudará a principal divisão que existe entre os ministros, do ponto de vista estatístico. Não é uma divisão esquerda x direita, garantistas x punitivistas ou ativistas x legalistas: é a divisão Marco Aurélio x os outros dez.

Fui introduzido para esse padrão em uma pesquisa que contabilizava milhares de votos dos ministros ao longo dos anos, e projetava um mapa em que os ministros ficam mais próximos quanto mais vezes tiverem votado juntos (e mais distantes quanto mais divergências tiveram). Por exemplo, nos Estados Unidos esses mapas de dissenso refletem a indicação de um ministro por presidentes democratas ou republicanos. Aqui, na minha e em outras pesquisas, os mapas frequentemente capturam a divisão 10 a 1, opondo o ponto representativo de Marco Aurélio ao do resto do Supremo.

Esses trabalhos atestam em geral o apelido “senhor voto vencido” que o ministro tem na comunidade jurídica, por reiteradamente ser minoria, sozinho, nas votações. Um dos estudos que projeta mapas para entender o comportamento dos ministros chega a excluir da amostra Marco Aurélio. É que o 10 x 1 é tão dominante nos dados que dificulta a análise das outras dimensões de divisão no Supremo.

De um pesquisador ouvi que o voto do ministro era endógeno. Muito resumidamente, na estatística, em estudos de causalidade, uma variável endógena é difícil de ser estudada por não poder ser separada de outras variáveis. O argumento do pesquisador era de que o voto de Marco Aurélio vai depender da própria expectativa de qual vai ser a decisão final do colegiado (para dela não participar). Endógeno foi o termo técnico que o pesquisador usou, mas em bom português quis dizer que o ministro é do contra.

Na amostra da professora Fabiana Oliveira, da UFSCar, o ministro ficou isolado da minoria em 37% das decisões em ações direta de inconstitucionalidade que tiveram divergência. É até mais vezes do que esteve com a maioria (24%). Nenhum outro ministro chegou perto desse perfil de dissidência: o mais próximo foi Ayres Britto, minoria isolado em 4% das vezes, estando com a maioria em 74%.

Do ponto de vista da economia, não há como classificar em um rótulo os votos do ministro. Foi voto vencido contra a quebra do monopólio do petróleo, a contribuição de servidores aposentados à Previdência, ao status de ministro do presidente do Bacen, ao piso salarial estadual por categoria, ao Supersimples. Destaca-se por ser favorável a maior autonomia dos Estados.

Seja como for, posicionamentos que não teriam espaço na Corte acabaram o tendo pelos votos de Marco Aurélio (ao contrário do que o noticiário possa sugerir, grande parte das decisões do Supremo são na verdade unânimes). Por exemplo, o ministro defendeu sozinho um de pontos mais polêmicos da reforma trabalhista: a permissão para lactantes e gestantes trabalharem em atividades com grau de insalubridade mínima ou média.

Era uma bem-intencionada medida da reforma para combater uma chaga nacional: o alto desemprego da mulher jovem, uma fábrica de pobreza. Mas a mudança foi um desastre de relações públicas, e é até agora o único ponto da reforma derrubado pelo Supremo. Ela corrigia uma alteração recente na legislação que cortava parte da remuneração de médicas e enfermeiras e dificultava o emprego de trabalhadoras como camareiras, proibidas de trabalhar se engravidarem – até o fim da lactação.

É que muitas atividades da economia, até mesmo a de telemarketing, podem ser consideradas de grau de insalubridade mínimo ou médio (trabalhar com insalubridade de grau máximo, ao contrário do senso comum, permaneceu proibido pela reforma). No Twitter, pequenos empreendedores contavam como a decisão judicial os estimulava a contratar homens, já que qualquer mulher jovem poderia ser mandatoriamente afastada por mais de um ano – de ocupações de menor escolaridade tipicamente femininas, como camareiras, a mais sofisticadas, como engenheiras. O assunto é sensível e exige pragmatismo: quase 60% das famílias formadas por crianças e mães solo vivem abaixo da linha da pobreza, superando por muito todos os outros tipos principais de domicílio.

Cass Sunstein, o celebrado jurista americano que trabalhou com Obama, afirma que, quando não divergimos, privamos a sociedade de informações importantes. Ele, que escreveu até um livro sobre o tema, conclui então que quem diverge acaba executando importantes funções sociais (e de graça). Em uma era de decisões monocráticas, é um bom lembrete sobre a relevância dos colegiados. (O Estado de S. Paulo – 28/07/2020)

PEDRO FERNANDO NERY, DOUTOR EM ECONOMIA

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