NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Em meados de março passado, um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido — a mesma que desenvolve a vacina que está sendo testada por aqui — previa a ocorrência de 478 mil mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o que foi e ainda é considerado um exagero. Chegaram a essa conclusão analisando os casos da Itália e da Coreia do Sul e comparando os perfis demográficos desses países com os do Brasil e da Nigéria.
Na mesma época, dois pesquisadores brasileiros montaram um modelo matemático em Python, que previa a ocorrência de 2 milhões de mortes no Brasil, caso o isolamento social não fosse adotado. José Dias do Nascimento Júnior, professor e doutor em astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e astrônomo associado ao Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, e Wladimir Lyra, doutor da New Mexico State University, compartilharam os dados com o conceituado Centro de Ciências de Sistemas e Engenharia (CSSE, em inglês) da Universidade Johns Hopkins.
Então, os indicadores de contaminação da Itália registravam que um infectado passava o vírus a três ou quatro pessoas, em média, antes de se curar ou morrer pela doença; com isso, o número de casos dobrava a cada quatro dias. Diante das projeções, Lyra concluiu que haveria duas maneiras de finalizar essa epidemia. A primeira é quando muitas pessoas fossem infectadas e desenvolvessem a imunidade ao se curar. Obviamente, nesse caso, o número de mortos poderia ser assustador. A segunda maneira seria quando a taxa de infecção fosse menor do que a taxa de remissão. A quarentena (ou vacina) funciona por diminuir a taxa de infecção. O tratamento aumenta a taxa de remissão. Sem capacidade de tratamento ou vacina, temos apenas a quarentena como medida eficaz.
Na época, no Brasil, cada pessoa infectada estava, em média, infectando seis. Caso nada fosse feito, em dois meses, 53% da população estaria infectada ao mesmo tempo. Isso significaria mais de 100 milhões de casos e 2 milhões de mortos. Esses e outros estudos foram decisivos para a adoção da estratégia de isolamento, com objetivo de achatar a curva da epidemia e permitir que o sistema de saúde se estruturasse para enfrentar a doença.
Caso a estratégia de “imunização de rebanho” tivesse sido adotada, como o presidente Jair Bolsonaro ainda defende, a situação atual seria muito pior, diria o humorista Barão de Itararé, na sua Teoria das duas hipóteses, segundo a qual tudo pode piorar. Apparício Fernando Brinkerhofer Torelly, genial criador do jornal A Manha, sabia das coisas. Ou seja, é falsa ideia de que a quarentena não funcionou, mesmo aos trancos e barrancos. E o afrouxamento da política de distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social sobre governadores e prefeitos, está mostrando o risco que a imunização de rebanho ainda representa.
Tragédia anunciada
Quando os estudos foram divulgados, o Brasil tinha 413 casos confirmados, sendo 291 em São Paulo, e registrava a primeira morte, um homem de 62 anos, na capital paulista. Hoje, estamos próximos de 1,5 milhão de brasileiros infectados, com quase 50 mil novos contaminados e mais de 1.200 mortes por dia. Somente o estado de São Paulo confirmou mais 12.244 casos nas últimas 24 horas e mais 321 óbitos.
Metade das unidades federativas do país já registrou mais de mil mortes pelo novo coronavírus. O Rio de Janeiro tem 116.823 casos e 10.332 mortes. O Pará bateu mais de cinco mil perdas, com 5.004 registros. O Ceará tem 6.284; Pernambuco, 4.968 mortes. Amazonas, 2.862; Maranhão, 2.119; Bahia, 1.947; Espírito Santo, 1.728; Rio Grande do Norte, 1.103; Alagoas, 1.091; Minas Gerais; 1.059; e Paraíba, 1.044. A epidemia, agora, avança nos estados do Centro-Oeste e no Distrito Federal.
Como na economia o estrago é enorme — a massa salarial perdeu R$ 52 bilhões, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)—, prefeitos e governadores entraram numa espécie de salve-se quem puder. Em muitas cidades, o isolamento social está sendo substituído pela distribuição de um coquetel à base de hidrocloroquina, para a população de baixa renda, que se contamina na volta ao trabalho. (Correio Braziliense – 03/07/2020)