Quem o pariu que o embale
Tem preço assistir o presidente Jair Bolsonaro a defender-se dizendo que o histórico do seu governo “prova” que ele e sua turma sempre estiveram “ao lado da democracia e da Constituição”? Que “não houve por parte do governo, até agora, nenhuma medida que demonstrasse apreço ao autoritarismo”? E que está sendo “vítima de abusos”? Não, não tem preço.
Tudo isso e um pouco mais ele disse por meio de uma longa nota postada nas redes sociais no fim do dia em que, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou a quebra de sigilo bancário de dez deputados federais e um senador bolsonaristas. Moraes também é relator do inquérito das fake news.
Além de parlamentares, o inquérito tem como alvos o vice-presidente do novo partido de Bolsonaro, o Aliança Pelo Brasil, o marqueteiro do partido e empresários suspeitos de financiar a rede bolsonarista de produção de notícias falsas e manifestações de rua de natureza claramente antidemocráticas. A muitas delas compareceram Bolsonaro e vários dos seus ministros.
Quando se vê em apuros, o presidente da República, que sempre defendeu a ditadura, invoca a seu favor os valores da democracia. “Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, escreveu. Direitos violados de quem? Não disse. Que ideias estão sendo perseguidas? Não disse. Quem viola os direitos? Não disse.
“Fingir naturalidade diante de tudo o que está acontecendo só contribuiria para sua destruição. Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo”, prosseguiu. Sem detalhar “o que está acontecendo”. Sem identificar quem atenta “contra a liberdade” do povo. E ensinou: “É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso, sim, é democracia”. Bravo!
O sujeito oculto das admoestações de Bolsonaro é o Supremo Tribunal Federal e demais instâncias da Justiça que, com decisões, põem seu mandato em risco, assim como os mandatos dos seus filhos – um senador, outro vereador, o terceiro deputado federal, todos envolvidos em negócios mal explicados. Foi para garantir o futuro deles que Bolsonaro se candidatou a presidente.
O público a quem se destinou a nota, também oculto, é a base eleitoral que resta a Bolsonaro. Não é pequena e não está se evaporando. Mas já foi muito maior. Os bolsonaristas de raiz, os mais radicais, aqueles que sempre defenderam tudo o que o capitão faz e fala, principalmente esses estão assustados com a inépcia do governo e a situação a que se encontram expostos.
O cerco político e judicial a Bolsonaro e aos seus garotos está se apertando. Na Praça dos Três Poderes, dois canhões apontam para o terceiro andar do Palácio do Planalto onde o presidente despacha. Um é o Congresso. O outro, o Supremo. O cerco a Lula começou com ele presidente e acabou com ele sem mandato e preso. O cerco a Bolsonaro poderá se fechar mais rápido.
Fernando Henrique Cardoso admitiu ter governado o país no seu primeiro mandato à base do gogó. Bolsonaro não tem competência para isso. Lula tinha um partido para chamar de seu e socorrê-lo nas dificuldades. Bolsonaro não tem. O que teve desprezou. O que gostaria de ter foi incapaz de montar até aqui. Corre atrás do prejuízo quando apela para a ratatuia do Congresso.
A carta que joga na mesa à falta de outra, a do apoio militar que poderia resultar em um golpe para favorecê-lo, configura mais um blefe do que uma possibilidade de vitória real. Onde já se viu generais darem um golpe em defesa de um capitão? E em nome do quê dariam? Da democracia ameaçada pelo Supremo e o Congresso? Do uso da cloroquina contra qualquer doença?
Só resta uma saída para Bolsonaro completar o mandato: submeter-se às leis e entender-se com os demais Poderes. Por ora, ele está a caminho do suicídio político, com direito a figurar num pé de página da História. (Veja – 17/06/2020)