Rosângela Bittar: Fase 2, sobrevivência

É imperativa a compreensão do alcance da firme reação humanista com que homens públicos de diferentes tendências e origens estão respondendo ao surto de barbarismo do governo Jair Bolsonaro. As manifestações ponderadas de ex-ministros de Estado chamam à realidade muitos dos seus sucessores, em áreas sensíveis como Direitos Humanos, Relações Exteriores e, nesta semana, Defesa. A exortação enfática à razão visa o presidente.

Duas vantagens com as quais Bolsonaro ainda conta, porém, impõem cautela na tradução dos manifestos em ação concreta: o apoio de parte da opinião pública, que se reduziu, mas não acabou; e a sua ínfima, porém real, capacidade de, mesmo cambaleando, ainda conseguir obter o apoio de um grupo político como o Centrão. Às feras da barganha entregou, sem hesitar, a chave do cofre bilionário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Uma prova de que Bolsonaro ingressou, definitivamente, na fase 2 do seu governo, a da sobrevivência.

Para isso, precisou recuar de promessas e remodelar o teatro. Além do Centrão, quer a seu lado os egressos da carreira militar, da ativa ou da reserva. Se há uma distorção do conceito de poder que habita Bolsonaro esta é a que simplifica a conjugação do verbo mandar. A lógica é: ele manda, todos obedecem. Os militares, como têm na disciplina um norte, se estão no governo, defendem o governo.

Os argumentos recentes de três deles, apresentados para justificar a crueldade e descaso presidencial com a população doente e enlutada, são evidências desta missão. Um deles, a título de ser portador de boa notícia, anunciou um plano econômico, ainda no esboço, cuja existência ocultara do ministro da Economia. Outro, em fórum internacional sobre o assunto, omitiu a perplexas autoridades a gravidade da situação brasileira. Um terceiro alegou, em entrevista, os vários tipos de morte, inclusive no trânsito, para se queixar da ênfase aos que perderam a vida com a infecção por coronavírus.

Não está prevista, também, a substituição dos suspeitos de corrupção e dos ministros ventríloquos das ideias estapafúrdias. Com uma exceção recente: Bolsonaro já admitiria tirar o cargo de Abraham Weintraub. Sem noção, desde sempre, além do conjunto da obra, decidiu estranhar a presença do Centrão no seu ministério. Mas Ernesto Araújo e Damares Alves estão garantidos.

À medida que o governo vai se decompondo, as cabeças que ainda davam algum sentido à primeira formação ficam esperando sua hora.

Paulo Guedes se mostra cada vez mais transtornado e agressivo à moda presidencial, no ataque em marcha contra as instituições, os Poderes, os governadores. Engole a seco o conflito do seu plano com as concessões exigidas pela crise e decreta que o inferno são os outros. Sua presença não é mais compreendida. Quando sair, o critério da homogeneidade deve elevar, para seu lugar, a cotação do presidente da Caixa Econômica Federal. Se for, combina.

Também estrela da concepção original, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sabe que vai sair, só não sabe quando. Ela se enfraqueceu no bombardeio diplomático e ideológico à China, com quem o agronegócio brasileiro mantém vigoroso mercado. É conhecida a máxima da prática política de que ministro forte recebe pedidos e ministro fraco recebe apoio. Não foram poucas as notas de apoio a Tereza Cristina, de cuja competência e seriedade não há dúvidas.

Bolsonaro ainda detém instrumentos de poder, como as prerrogativas de governar, que não usa. Mas usa e abusa de outros, como a autoridade, que não tem. Situação que sugere a urgência de antecipar aquele choque de humanismo inserido nos manifestos referidos. Já espalharia um pouco de ar neste sufocante clima. (O Estado de S. Paulo – 20/05/2020)

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