Sem o cuidado das pessoas, não há economia que resista ao choque inédito que testemunhamos
A pandemia e a crise econômica nos oferecem dor, ansiedade, tristeza. Mas a pandemia e a crise econômica também nos oferecem liberdade, justiça e avanços em direitos. Como já argumentava Thomas Paine no século 18, não há liberdade plena sem direitos fundamentais e, para alcançar tais direitos fundamentais, um humanista não pode deixar de defender que o Estado cumpra seus papéis fundamentais. Paine é uma espécie de guru dos libertários norte-americanos, muitos deles defensores das ideias de alguns intelectuais da Universidade de Chicago nos anos 1960 e 70, como o Estado mínimo. O que esses libertários talvez tenham preferido esquecer é que Paine, junto com outros grandes pensadores, lançou as bases do Estado de Bem-Estar social, cujo pilar era a renda básica, sobretudo para os mais jovens e os idosos.
No Brasil, a renda básica, ou a renda básica da cidadania, foi a luta de quase uma vida inteira do ex-senador Eduardo Suplicy. Não à toa, o ex-senador cita Thomas Paine em suas obras. Afinal, vem dali a ideia de cidadania, de que a renda básica transcende o assistencialismo para alcançar outro patamar de justiça social. Esse patamar diz respeito ao humano e a como nos percebemos uns aos outros. Antes da pandemia, era comum considerar esses temas como sendo utópicos, fantasias de intelectuais e políticos que jamais teriam chance de realização. Mas eis que, em plena pandemia, começamos a observar a formação de uma coalizão para construir uma nova realidade, mais justa, mais igualitária, mais humanista, aparecendo a renda básica como o eixo de uma economia com olhar humanista: uma economia do cuidado. Sem o cuidado das pessoas não há economia que tenha qualquer capacidade de resistência ao choque inédito que testemunhamos.
Já tratei da renda básica nesse espaço diversas vezes ao longo dos últimos dois meses. Aos trancos e barrancos, o Brasil conseguiu formar um consenso em torno da renda básica emergencial, programa que ainda haverá de ganhar as páginas dos jornais internacionais, hoje chocadas com a boçalidade presidencial. Tornar esse benefício permanente significa dar alguma chance a dezenas de milhões de brasileiros que hoje estão visíveis, posto que diretamente atingidos pela calamidade. Tornar permanente esse benefício representa uma chance ao Brasil de se mostrar novamente pioneiro pragmático de ideias antigas.
Há, nesse momento, muitos estudiosos debruçados sobre o tema da renda básica permanente, tentando desenhar propostas viáveis. São muitos os obstáculos. Eles vão desde a falsa ideia de que pessoas mais pobres, se receberem um benefício como a renda básica, deixarão de trabalhar – tese amplamente derrubada pelos vários estudos empíricos existentes – até as preocupações com o financiamento desse programa. A renda básica permanente, em tese, é mais onerosa do que o Bolsa Família. Contudo, se unificarmos todos os programas sociais do Brasil para financiá-la, há especialistas mostrando que parte significativa do custo seria coberta. Além disso, é sempre bom lembrar que aqueles que menos recebem são aqueles que mais consomem. Afinal, não é dada aos mais pobres a condição de poupar. Sendo assim, a renda básica fomenta consumo e consumo fomenta arrecadação, o que significa que o programa é, por definição, parcialmente autofinanciável.
Mas há outra questão de justiça social que caminha lado a lado com a renda básica: a justiça tributária. O País não pode mais ter uma estrutura que depende de tributação sobre o consumo e produção por serem esses impostos regressivos e empecilhos ao dinamismo e à produtividade de nossas empresas. É hora, sim, de começar a pensar na inversão da pirâmide tributária brasileira, desonerando o consumo e a produção, e onerando a renda e o patrimônio. Há quem diga que onerar patrimônio é contraproducente, pois levará à saída de recursos do País. Trata-se de um equívoco. Patrimônio não é apenas dinheiro no banco, mas imóveis e outros recursos que não são facilmente removíveis. Ninguém vai pôr um edifício debaixo do braço e sair com ele pelo mundo. Ainda que pudesse fazê-lo, para onde o levaria? Para a Europa? Para os Estados Unidos? Nesses países existe tributação de patrimônio e de renda. E neles se discute, hoje, a elevação desses tributos. Para quê? Para que se possa ter uma agenda de cidadania para enfrentar a crise humanitária.
O Brasil não é diferente, não há qualquer particularidade que o impeça de pensar essa agenda. Ao contrário, no Brasil há uma avenida de oportunidade para reduzir as desigualdades profundas e diversas. O Brasil só será diferente se resolver desperdiçar o momento valioso para uma frutífera e esperançosa discussão. A discussão sobre a agenda da cidadania é a única que realmente importa. (O Estado de S. Paulo – 13/05/2020)
Monica de Bolle, economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University