Os reiterados apelos de autoridades médicas para que a população permaneça em quarentena, durante a epidemia da covid-19, tem tido consequências aquém do esperado e, principalmente, do necessário. Há diversos fatores sociais e culturais por trás da imprudência coletiva. A começar de que milhões de brasileiros não têm habitação ou a habitação adequada ao isolamento.
Além do que, esses apelos se baseiam no pressuposto equivocado de que toda a população regula seu comportamento costumeiro, em questões de saúde, pelas mesmas concepções dos médicos e dos cientistas.
Equivocado porque, historicamente, o brasileiro é culturalmente duplo, nas concepções e na língua, uma das consequências das duas escravidões que fizeram o Brasil que conhecemos, a indígena e a negra, além da influência do branco retrógrado. Somos um país atrasado. O que faz do conhecimento científico um conhecimento paralelo ao popular, e com ele em disputa.
No geral, médicos intuem isso. Problema que se abrandaria se nos currículos das faculdades de medicina fosse incluída a antropologia. Uma ponte sobre o abismo que separa e contrapõe as duas culturas.
Tenho observado, em minhas pesquisas, muitos casos, embora fragmentários, no Brasil inteiro, que evidenciam o quanto amplos setores da população estão muito longe das recomendações da cultura médica. E do que seria próprio de uma sociedade cujas normas de saúde fossem reguladas pela racionalidade própria da ciência.
Os muitos casos esparsos que observei deixam claro que o saber popular sobre doença e saúde, mesmo nas grandes cidades, está numa relação de conflito e de antagonismo com o saber médico. O próprio presidente da República, por ignorância e oportunismo explícitos, expressa diariamente esse conflito, ao agir para contestar a medicina.
Num cenário desses, é difícil definir normas de saúde pública, especialmente em momentos de emergência e de urgência. É de limitada eficácia, numa disputa desse tipo, a recomendação de normas da noite para o dia.
Esta é uma interpretação impressionista desse desencontro. Mas do peculiar impressionismo de que se vale todo pesquisador e cientista para definir o primeiro e provisório quadro de sua observação científica sobre determinado problema ou questão.
Seu senso comum é diverso do senso comum popular. É, antes, uma sistematização de conhecimento científico, que lhe permite ver, na urgência de situações inesperadas, o que o conhecimento popular não permite ver senão impropriamente no plano mágico e, eventualmente, religioso.
O problema começa com o fato de que há no Brasil, historicamente, uma ampla ignorância induzida, que se tornou o fundamento de uma cultura paralela de permanente disputa entre juízos de valor e juízos de realidade. A ignorância é, desde a origem do Brasil, um instrumento de poder.
É esse o cenário que define os problemas da saúde pública, em situação de emergência, como agora. Os serviços de saúde chegam à massa da população, seja dos pobres, seja da classe média, precariamente. É mais fácil fazer uma consulta médica do que fazer os exames recomendados pelo médico, que podem demorar meses. As coisas se complicam se for necessária uma internação, uma cirurgia.
Com isso, o médico se torna coadjuvante das improvisações e soluções da medicina popular, do curandeirismo, dos benzimentos. As pessoas ficam sabendo que suas dores e incômodos têm nome, nome de doenças. Mas a solução acaba sendo procurada fora do âmbito médico. Não é casual que aqui a medicina científica seja de fato apenas a segunda instância da medicina popular, da automedicação, das campanhas de liquidação de remédios das farmácias.
Um dos aspectos mais problemáticos desse desencontro é a descrença no saber médico. Sou usuário de hospital público e gosto de acompanhar as conversas de sala de espera. As pessoas trocam informações sobre as queixas que estão levando ao médico. Os outros pacientes opinam, fazem diagnósticos, até dizem que exames o queixoso recomende ao médico para que apenas faça a requisição.
Quando falha o convencimento alternativo do leigo, também paciente, entra o diagnóstico religioso. A conversa, então, se torna proselitismo em favor do grande médico de todas as enfermidades. Já presenciei na espera do ambulatório do Hospital Universitário da USP um desentendimento entre três evangélicos, vinculados a três diferentes igrejas fundamentalistas, por eles mesmos identificadas, porque um impugnava a visão religiosa do outro em nome da sua.
Por trás da resistência à quarentena há um conjunto extenso de insuficiências históricas, sem solução numa situação de emergência, como esta, que é também a de insuficiência de governo. (Valor Econômico – 22/05/2020)
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “O Cativeiro da Terra” (Contexto).