Graças ao esforço do casal Lélia e Sebastião Salgado, o Correio Braziliense publicou no domingo um apelo assinado por dezenas de personalidades mundiais, pedindo por nossos indígenas. Alertam para que não sejamos cúmplices do genocídio que está sendo cometido por madeireiros, grileiros, garimpeiros, latifundiários com apoio do presidente da República, usando o coronavírus como arma.
Nós já despertamos para o risco do genocídio urbano se não respeitarem o isolamento social necessário para vencer a pandemia. Mas não despertamos ainda para o genocídio que está sendo perpetrado contra povos indígenas. A ciência mostra que a epidemia só será enfrentada se forem tomadas medidas para isolar pessoas. Qualquer desincentivo ao isolamento provoca aumento de mortes, além de ampliar o sofrimento dos infectados, mesmo que não cheguem à morte. O desrespeito ao que diz a ciência é gesto genocida.
O efeito do isolamento sobre a economia deve ser mitigado por medidas econômicas, não antissanitárias. Negar cuidado a quem ficou sem dinheiro e sem emprego é crime social que deve ser evitado por transferência de renda e outros meios. Esse crime social vem sendo cometido há séculos no Brasil, negando-se água, esgoto, emprego e renda à metade de nossa população. Jogar a culpa da desigualdade e da pobreza sobre o coronavírus é querer esconder o crime social secular cometido pelos governos, de direita e esquerda, que dominam o poder no país, ignorando necessidades e direitos dos pobres.
Mas o coronavírus agrava esse crime social cometido por nossos dirigentes, com apoio da minoria privilegiada, contra nossos índios, negros e pobres. Não é decente hierarquizar a barbárie entre diferentes genocídios, comparar a maldade dos campos de concentração e câmaras de nazistas, com os navios negreiros e a venda de pessoas na escravidão. São formas brutalmente desumanas, independentemente do número de vítimas e do tempo que durar a prática genocida.
Não menos grave e em número muito maior de vítimas foi o genocídio, desde 1492, dos povos nativos nas Américas. Estima-se que 75 milhões de indígenas foram mortos por ação, deliberada ou não, de minorias privilegiadas e seus governos. Pessoas e etnias inteiras, idiomas e culturas foram eliminadas por exploração, expulsão ou contaminação em guerras em que vírus e bactérias invadem a área, como exércitos, antes de madeireiros, mineradores, garimpeiros, grileiros, latifundiários e empresas agrícolas. Em nome do progresso e da ganância. Com a ajuda de armas, vírus e máquinas, o genocídio foi sendo executado.
Esse crime contra a humanidade foi cometido por todas as gerações que se beneficiaram ou toleraram os gestos genocidas do passado. Mas nós somos ainda genocidas porque estamos tolerando o genocídio que ocorre neste momento em nossas florestas contra os índios. Em nome dos mesmos interesses e com as mesmas armas dos últimos 500 anos.
O coronavírus está sendo usado agora, como antes se usou a varíola. No passado, sob os olhos de europeus, agora, sob nossos olhos e sob a ação de um governo que, por leis, decretos e gestos, incentiva invasores que assassinam líderes e demite agentes públicos conscientes, que tentam impedir o crime.O governo Bolsonaro é reconhecido como genocida por ignorar a ciência e incentivar a disseminação do vírus nas cidades, mas ele é ainda mais explicitamente genocida pelo incentivo consciente da expulsão e da morte dos povos indígenas de suas terras. E pela destruição do meio ambiente, que dá sustentação à vida desses povos.
Ele é o maior culpado por ação e, um dia, será julgado em tribunais internacionais, mas é preciso reconhecer que ele não está só. Da mesma maneira que a população alemã no passado foi conivente com crimes nazistas, nós todos somos genocidas por omissão. Mais culpados do que os alemães, porque eles não tinham as informações que nós temos.
A iniciativa de Sebastião Salgado e sua esposa, Lélia, reúne grandes personalidades, como artistas, escritores, líderes políticos, em apelo para que nossa geração de brasileiros não fique na história como bárbaros coniventes com genocidas. É como se, há 500 anos, os personagens mundiais da época tivessem alertado aos portugueses e espanhóis do genocídio que estava sendo cometido contra os nativos das Américas.
Os que assinam essa nota fizeram um apelo ao mundo, em que nos alertam para deixarmos de ser cúmplices com o genocídio contra os povos indígenas. Façamos nossa parte: gritemos contra. (Correio Braziliense – 05/05/2020)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)