Jair Bolsonaro foi eleito presidente pela soma de dois fatores principais: o crescimento legítimo de um pensamento fortemente conservador nos costumes e a rejeição ampla à corrupção na política, simbolizada pelo PT, mas que, desde sempre, envolveu vários partidos. O segundo elo dessa aliança não durou muito. Mal o governo zarpou e o casco do combate à corrupção começou a verter água, com a divulgação das investigações de supostos crimes envolvendo o filho Flávio Bolsonaro, e a opção expressa do presidente pela proteção ao rebento. Longe de ser um caso isolado, logo ficaria claro que para Bolsonaro os interesses familiares sempre estariam acima do interesse público.
Nesse abraço paternal, valeu e vale tudo: exoneração de ministros técnicos, boicote à CPI da Lava-Toga e aos pedidos de impeachment de ministros, sabotagem aos projetos de lei que endureciam o combate à corrupção e mesmo uma parceria inusitada com togados e políticos antes demonizados na campanha eleitoral. O último lance do “paisidente” desaguou na saída do ministro Sérgio Moro do governo, resultado de uma tentativa desesperada de aparelhar a Polícia Federal para obter informações e controle sobre investigações que tangenciam as atividades de seus três filhos, todos políticos. Enquanto isso, contrariando aquele discurso que serviu para ganhar votos, busca desesperadamente apoio congressual na base fisiológica do velho Centrão.
Restou a bandeira do conservadorismo, mas mesmo essa foi convertida numa versão digital histérica e populista em que, para justificar excessos, erros e um projeto personalista de poder, buscam-se constantemente inimigos a serem combatidos, mesmo que fictícios. O emprego da mentira, das fake news e de um exército de robôs virtuais se tornou método e rotina de governo. Nesse embate permanente, os fatos, a ciência e a verdade passam à condição de adversários que precisam ser destruídos. Essa mira desgovernada atinge, tragicamente, o combate à devastadora pandemia do coronavírus.
A consequências são terríveis: temos um presidente democraticamente eleito que trabalha 24 horas por dia contra a democracia. Que tenta atribuir sua ineficiência a um lunático complô contra sua pessoa, numa narrativa delirante que envolve entidades internacionais, mídia, ex-aliados ou colaboradores e políticos adversários. Que procura justificar a entrega de parte generosa do orçamento público a condenados ou investigados por corrupção com o argumento da “necessidade de montar uma base parlamentar”, quando nunca fez sequer um gesto de diálogo na direção de uma maioria de independentes que trabalham por ideias e projetos para o Brasil.
É em meio a esse dilema que chegamos a um dos momentos mais críticos da vida nacional. Não bastasse vivermos a tragédia de uma crise sanitária, na qual a escalada do número de doentes e mortos nos assusta a cada dia, e suas consequências – sobretudo a violenta asfixia da economia que ameaça empresas e empregos, com aumento da pobreza – temos a crise política criada pelo presidente da República.
Para sair dessa espiral é preciso racionalidade. Devemos nos perguntar se, nessas condições, a permanência do presidente da República no cargo favorece ou prejudica as providências que precisam ser tomadas para mitigar a múltipla crise. Parece-me clara a resposta, persistindo essa escalada de absurdos. É com esses fatores na mesa que precisamos traçar cenários e saídas, sempre democráticos, para resolver esse problema que a História nos colocou. (Poder360 – 05/05/2020)