A pandemia causada pelo novo coronavírus representa o maior desafio social, econômico e político das últimas décadas. O desafio está na natureza da crise que combina uma velocidade incomum – pela natureza exponencial do contágio – com as incertezas epidemiológicas e econômicas – que provocam tanto um risco à vida das pessoas quanto o risco de uma profunda depressão econômica.
Como eu comentei em minha última coluna (“Parada súbita, mas temporária”, 24/03), a imposição do distanciamento social é uma medida necessária para diminuir a velocidade do crescimento do contágio, com o objetivo de “achatar a curva” – frase que todos nós já conhecemos.
Mas o custo social e econômico do distanciamento social coloca um limite de tempo nesta estratégia. Como os dados já demonstram, está ficando cada vez mais difícil manter as pessoas em casa. Assim, a escolha terá que ser feita: passar para estratégias de saída ou “dobrar a aposta” e decretar um lockdown mandatório da população com repressão policial.
Para evitar uma saída desorganizada do isolamento social e/ou uma repressão social com riscos imensuráveis, devemos planejar estratégias de saída do distanciamento social. Essa discussão deve ser técnica e sem a politização que parece ter dominado a discussão do tema nas redes sociais, onde ela é debatida muitas vezes como uma escolha binária – entre a vida e a economia ou entre apoiadores e detratores do Presidente da República.
O sucesso das medidas de isolamento social para “achatar a curva” deve levar a uma queda no crescimento de casos identificados muito antes de termos atingido um nível de imunidade de grupo (que no caso do novo coronavírus se estima entre 50%-60% da população), no qual a epidemia se torna uma endemia. Imunidade de grupo somente será atingida com novos ciclos de contágio ou a descoberta e aplicação de uma vacina. No caso brasileiro, utilizando a experiência de outros países que adotaram medidas de isolamento social e levando em conta possíveis fatores atenuantes, nós estimamos que o primeiro pico “local” em casos totais deve ocorrer até o final de abril.
Dado que a descoberta, produção e distribuição de uma vacina não devem ocorrer no curto prazo, o que nos resta é decidir como gerenciar novos ciclos de contágio. Já podemos ver isso em vários países como a Coreia, Cingapura e Taiwan que tiveram grandes sucessos em controlar o surto inicial, mas agora estão enfrentando novos picos de casos.
Em um país continental feito o Brasil, a curva que queremos manter “achatada” na verdade é uma soma agregada de várias curvas locais. Assim, enquanto fez todo o sentido ter adotado uma estratégia nacional e geral de distanciamento social no início do surto, a estratégia de saída do distanciamento social deve ser, ao contrário, local e específica.
Já que o distanciamento social foi adotado para adequar o crescimento de casos que requerem hospitalização à capacidade do sistema de saúde, a definição do que se deve considerar “local” precisa levar em consideração inicialmente o sistema de saúde da região. Ou seja, a maneira como é articulado e acessado.
Um primeiro critério para iniciar o relaxamento das medidas de distanciamento social em uma área geográfica deve ser uma tendência de queda no fator de crescimento de novos casos e de óbitos, o que permitiria a formulação de uma projeção do total de casos graves requerendo hospitalização. A esses fatores variáveis devem ser considerados outros fatores fixos como: densidade urbana, proporção de idosos na população e a capacidade de prover ajuda aos que, em função da idade ou de outras condições médicas, têm um risco maior de precisar de hospitalização.
Reconhecendo que aquele local está “virando a curva”, o relaxamento das medidas deve obedecer a um critério geral: maximizar o ganho econômico e minimizar o risco epidemiológico.
Por exemplo, sabemos que o risco de contágio aumenta muito se permitimos aglomerações de pessoas. Ao mesmo tempo, sabemos que pequenos negócios são os mais economicamente vulneráveis. Assim, deve ser permitido primeiro a abertura de pequenos negócios antes de atividades que geram grandes aglomerações, como eventos esportivos e culturais, convenções, entre outros. Escolas devem abrir rapidamente dado a menor incidência de casos em jovens e crianças e a necessidade de permitir que os pais voltem ao trabalho. Ainda assim, devemos estar cientes que mudanças comportamentais, como o uso ubíquo de máscaras, devem continuar.
Sabemos também que os riscos podem ser diminuídos significativamente se pudermos efetivamente passar para um processo de identificação e rápido isolamento de uma proporção relevante de novos casos.
Este ponto merece maior atenção. Um dos fatores notáveis sobre este coronavírus é a grande proporção de casos assintomáticos. Dados da Itália e da Islândia indicam que 50%-75% dos casos são assintomáticos, onde a pessoa pode ter nenhum ou leves sintomas e se curar naturalmente em mais ou menos duas semanas. Contudo, ela pode infectar outros indivíduos sem saber durante este período.
Desta forma, uma política de testes apenas para pessoas sintomáticas associada ao afrouxamento do isolamento social muito provavelmente levará a novos e inaceitáveis picos de contágio. Já há simulações numéricas mostrando que uma política de ampliar a capacidade de testes para uma fração relevante da população, afim de identificar casos assintomáticos que seriam imediatamente isolados em quarentena mandatória, pode levar à melhora de resultados econômicos e de saúde (ver, por exemplo, Berger et al, “An SEIR infectious disease model with testing and conditional quarantine”, 24/02/2020).
Ou seja, a prioridade para que se passe a um processo seguro de afrouxamento do distanciamento social é a formulação de uma política de testar amostras aleatórias de pessoas assintomáticas. Preocupa muito, portanto, a reportagem do jornal O Estado de S.Paulo desta última sexta-feira, destacando que São Paulo tem 30 mil exames de pessoas sintomáticas à espera de resultados. Se essa curva de testes à espera de resultados não for “achatada” será improvável uma saída segura do economicamente destrutivo distanciamento social. Nosso sucesso relativo em gerenciar esta saída irá, em grande parte, determinar se o PIB deste ano vai cair 2%, nossa atual estimativa, ou algo ao redor de 5%, o que pode acontecer caso haja uma falha coletiva neste desafio.
Tony Volpon é economista-chefe do UBS Brasil e ex-diretor do Banco Central e recentemente lançou o livro “Pragamatismo sob Coação: Petismo e economia em um mundo de crises”, pela Alta Books”