Monica de Bolle em coautoria com o senador Randolfe Rodrigues
Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadamente denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamente, e sim atravessando um momento inédito em que a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitárias que precisam ser adequadamente tratadas pelos governos.
Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorização dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos. Essa autorização tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.
A medida é indispensável, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundários, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.
Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditórios e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.
A emenda apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabilidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituições financeiras beneficiadas, e a proibição de estas empresas distribuírem bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapartidas. O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substitutivo, estabeleceu critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classificação de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiros pelas agências internacionais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparência a serem obedecidos pelo BC.
Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleciam obrigações para as instituições financeiras que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibilidade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.
Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituições financeiras, uma vez que não se trata de impedir a distribuição de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundários. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.
Tais contrapartidas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constitucional que estabeleça claramente as contrapartidas.
Enfrentamos uma crise sem precedentes e, diante desse quadro, faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacionais exemplares por estabelecerem boas referências, sobretudo no que diz respeito aos instrumentos extraordinários dos bancos centrais. Países acostumados a adotar essas práticas exigem contrapartidas claras das instituições beneficiadas. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta. (O Estado de S. Paulo – 15/04/2020)
MONICA DE BOLLE, ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY