Não se pode banalizar a votação de mudanças constitucionais, sobretudo em sessões remotas
Vivemos tempos difíceis. A emergência causada pelo avanço da pandemia de coronavírus levou o Congresso Nacional a se manter atento e reunido, em inéditas sessões remotas, para dar velocidade à votação das medidas urgentes nas áreas de saúde, renda emergencial e emprego.
Estamos dedicados a construir soluções para os impasses econômicos, como o da preservação de empregos, das micro, pequenas e médias empresas e, principalmente, ao socorro aos mais vulneráveis na crise. Não é um esforço trivial, especialmente vivendo em distanciamento social. Por isso, trabalhar de forma coordenada e organizada é fundamental.
Ninguém tem uma fórmula pronta para superar essa crise inédita. Sem racionalidade, corremos riscos. Não faz sentido, por exemplo, aprovar projetos de autoria do Parlamento ao mesmo tempo em que chegam ao Legislativo medidas provisórias sobre os mesmos temas. Não pode dar certo porque não é produtivo.
Mesmo diante da calamidade, precisamos de calma e reflexão, o que não se confunde com morosidade. E cabe ao Senado ajustar o tom, moderando as iniciativas parlamentares ao mesmo tempo em que colabora, fiscaliza e corrige os rumos do governo.
Providências que requerem urgência devem ser tomadas preferencialmente por meio de medida provisória, com vigência imediata. O governo demorou a agir, como ocorreu na maioria dos países, mas agora está exercendo seu papel, ainda que de forma fragmentada.
Cabe a nós, congressistas, estabelecer um cronograma de votações articulado com o Executivo e, internamente, garantir espaço para parlamentares que tiveram a iniciativa de apresentar projetos redundantes em relação às MPs, seja assegurando relatorias ou contemplando emendas. Dessa forma, preserva-se o legítimo protagonismo político com resultados mais eficazes. O Senado tem a obrigação de ser a Casa que conduzirá, com tranquilidade, a transição para o Brasil pós-crise.
É preciso olhar para o presente sem perder a perspectiva de futuro. O momento extremo impõe mudanças de paradigma, como deixar em segundo plano o tão necessário equilíbrio fiscal, em nome da salvação de vidas. O amanhã pede que nós, legisladores, sejamos ativos na luta para preservar as instituições e a democracia, guiados sempre pela Constituição Federal.
Hoje, a prioridade é investimento público para superar a crise sanitária e preservar a atividade econômica. Criar esse chamado orçamento de guerra não requer a aprovação de uma emenda constitucional, como propôs a Câmara dos Deputados, ao aprovar a PEC nº 10/2020, em análise agora no Senado.
A autorização para gastar além de limites dados pelas regras fiscais válidas em tempos normais pode ser fixada por projetos de lei, como permite o estado de calamidade aprovado pelo Congresso —fundamento já atestado pelo Supremo Tribunal Federal.
Se mudarmos a Carta de afogadilho, reduzindo prazos e dispensando ritos para aprovar emendas, estaremos abrindo um grave precedente. Não se pode banalizar a votação de mudanças constitucionais, sobretudo quando realizamos sessões de votação remotas.
Correremos o risco do vale-tudo legislativo, ou seja, aberto o precedente será possível tramitar e votar, sem a reflexão necessária, desde impeachment ou estado de sítio até ampliação de mandatos sem voto. Será uma trilha aberta para arroubos populistas ou autoritários, e mais uma brecha para os oportunistas de sempre drenarem cada vez mais recursos públicos.
A tecnologia tem servido muito bem em temas onde há amplo acordo. Mas é limitadora para o debate e ainda não proporciona a transparência e a indispensável participação da sociedade. A discussão de ideias no plenário, em sessão presencial, é imprescindível quando se trata de alterar a Constituição.
Não à toa, o rito para emendá-la prevê quorum de três quintos dos votos, com duas votações em cada Casa legislativa. A Câmara aprovou a PEC em horas, com um parecer raso, que rejeitou, sem justificativa, as 26 emendas apresentadas.
É temerário recorrer a contorcionismos legais e regimentais, ainda que em nome da emergência. Não podemos descartar o bom senso. A Constituição não pode sofrer alterações apressadas. Vamos respeitá-la na crise, em nome do futuro. Ele está logo à frente. (Folha de S. Paulo – 13/04/2020)
Alessandro Vieira, senador da República (Cidadania-SE) e ex-delegado-geral da Polícia Civil de Sergipe (2016-2017)