Bolsonaro despreza os fatos e não se dá o trabalho de parecer coerente.
No começo do seu mandato, o Orçamento impositivo foi apresentado como manobra do Congresso para enquadrar um presidente que não queria negociar; depois, durante a votação, virou projeto desde sempre apoiado pela família Bolsonaro, demonstrando que não existia tensão entre os Poderes; em seguida, foi vetado pelo presidente.
Neste ano, quando o veto estava prestes a ser derrubado, voltou a ser chantagem do Congresso, motivo de sonoro “foda-se” pronunciado por um ministro; na semana passada, foi alvo de meticulosa negociação com os parlamentares; em seguida, a negociação, registrada no Diário Oficial, foi categoricamente negada.
A manifestação do dia 15/3 passou pelo mesmo processo.
Originalmente, foi convocada para pressionar o Congresso pela prisão em segunda instância; depois, a reboque do áudio vazado do general Heleno, virou convocação anti-Congresso; diante da repercussão negativa, transformou-se em ato pró-governo; de maneira pró-ativa, o presidente compartilhou a convocação; confrontado com o fato, disse que o fez na condição de pessoa privada; alegou, em seguida, que o vídeo não era sobre a manifestação deste ano, mas sobre uma manifestação de 2015; por fim, em evento público, fez elogio à manifestação, ressalvando que era espontânea.
É atordoante a sucessão de vaivéns.
O que os fatos sugerem é que, por inabilidade, Bolsonaro permitiu que o Congresso mordesse parte expressiva do Orçamento discricionário do Executivo.
Para não reconhecer sua incompetência política, nem a tensão crescente com o Legislativo em início de mandato, Bolsonaro fez parecer que não era contra o Orçamento impositivo, mas, sim, a favor dele. Em seguida, teve que reconhecer que a medida era ruim e que, se não negociasse, perderia o poder de alocação sobre R$ 30 bilhões. Convocou, ou articulou para que se convocasse, uma mobilização contra o Congresso para ampliar seu poder de negociação e desgastar as instituições. Mesmo tendo logrado uma boa negociação, disse que não negociou para manter a base mobilizada.
Chama a atenção como Bolsonaro consegue emplacar narrativas desprezando fatos e mesmo suas ações precedentes. Apenas neste episódio, o presidente foi evasivo, mentiu e se contradisse inúmeras vezes. Seus ataques à imprensa colocam em xeque a única maneira de determinar os fatos, e sua máquina de propaganda, por meio da repetição, consegue impor as explicações mais implausíveis.
Essa confusão toda tem estratégia. (Folha de S. Paulo – 10/03/2020)
Pablo Ortellado, Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.