Adversários da reforma tributária promovem confronto
Fantasiado de super-herói patriota, o “capitão brasil” surge, por trás de um ônibus pintado nas cores do Brasil, para fazer uma estridente convocação para a manifestação de domingo. O vídeo, que circula em grupos de whatsapp de investidores, é estrelado por Luciano Hang, dono da Havan, varejista catarinense e bolsonarista de primeira hora.
O empresário foi convocado para depor na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito montada para investigar o financiamento da rede de propagação de fake news desde a campanha eleitoral. Hang poderia não passar de empresário folclórico enrolado na máquina bolsonarista de moer reputações. Mas integra um ativo grupo de empresários, alguns mais discretos, como Flávio Rocha, do grupo Riachuelo, que tem bombardeado a proposta de reforma tributária patrocinada pela indústria nacional e encampada, em grande parte, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Pelos canais de que dispõem junto ao bolsonarismo, têm feito chegar ao presidente a percepção de que a reforma, além de afetar o setor de serviços, hoje responsável por algo em torno de 65% do PIB, azedaria o humor da classe média, a quem seria repassada a majoração de preços – da mensalidade escolar à consulta médica. Se a reforma da Previdência unificava o empresariado, a tributária o divide. Além da cizânia de interesses, a reforma tributária tem alinhado parte do empresariado à opção preferencial do presidente da República pela afronta às instituições.
Um ex-presidente de instituição financeira, hoje investidor, recorre à expressão cunhada pelo professor Delfim Netto – “legítima defesa” – para justificar seu voto em Bolsonaro. De tudo que estava posto, nada o incomodava mais do que a perspectiva de volta do PT. A opção se reproduzia entre seus pares. Nada do que Bolsonaro poderia ser capaz de fazer seria mais grave do que ter os petistas de novo no governo.
Hoje, de cada dez pessoas de seu meio com quem conversa, quatro acrescentaram mais um motivo para não terem se arrependido do voto. Além do antipetismo, passaram a se identificar com o presidente da República em seus embates, particularmente com o Congresso. A caravana de Luciano Hang já arregimenta gestores de fundos de investimento que se veem prejudicados pela proposta tributária em curso.
Nunca houve, neste ou em qualquer outro governo, um grupo monolítico de interesses empresariais e financeiros. Com Jair Bolsonaro a relação não se guia nem pelo padrão Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (frequente) nem por aquele vigente sob Dilma Rousseff (inexistente). A estimular a negociação de interesses empresariais no fórum constitucionalmente investido para a tarefa, o Congresso Nacional, o presidente prefere cultivar o confronto.
E cativa seguidores para além do bolsonarismo empresarial raiz. Num encontro recente de “mulheres investidoras”, um dos palestrantes convidou-as para um evento no dia 15 de março – “Mas não se preocupem porque não estou falando da manifestação”, advertiu, para, em seguida, perceber que se tivesse celebrado a coincidência das datas teria feito mais sucesso. Muitas delas manifestaram a disposição de marchar sob o patrocínio de cartazes que fazem rolar a cabeça de Rodrigo Maia descarga abaixo, ou conclamam generais fardados a sair em defesa da ordem.
Este tipo de mobilização empresarial tende a cativar o presidente mais do que o fórum reunido por Paulo Skaf ao qual o presidente compareceu acompanhado por seis ministros. Desde que foi investido no cargo, no início do século, o presidente da Fiesp dele se vale para pavimentar sua carreira política, seja Lula ou Bolsonaro o presidente de plantão. Para se alinhar à ordem vigente, Skaf loteou a diretoria da Fiesp de generais da reserva. Com a ajuda deles, garantiu a inédita permanência de um presidente da República por quatro horas e meia nos salões da Fiesp e foi capaz de fazer falar o silente novo ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, o general que ainda está por transmitir a chefia do Estado-Maior do Exército no dia 3 de abril.
Pelo menos dois dos 38 participantes do encontro da Fiesp, Salo Seibel (Duratex) e Dan Ioschpe (Ioschpe-Maxion), voltaram a se encontrar, no mesmo dia, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em reunião pedida pelo Iedi para discutir reforma tributária e da qual também participariam Daniel Feffer (Suzano), Horácio Lafer Piva (Klabin), Pedro Wongtschowski (Ultrapar) e Raul Calfat (Aché). A pauta do encontro de três horas, durante o qual Guedes falou, ininterruptamente, por um terço do tempo, foi a mesma reforma tributária que, no dia seguinte, reuniria o ministro às entidades da Coalizão Indústria, no Rio. Ao contrário do que fizera na Fiesp, quando estava ao lado do presidente da República, o ministro, nesses dois encontros, não se queixou do Congresso.
É a percepção de que Guedes ainda está comprometido com reformas, especialmente a tributária, que ainda sustenta o apoio desses industriais à sua permanência no cargo. A pauta, na visão de um industrial participante de um desses encontros, nada teria a ganhar a partir do confronto com o Congresso. A percepção se confirmaria na tarde de ontem quando o Congresso derrubou o veto ao aumento em R$ 20 bilhões dos gastos com o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Entre um ministro que, na véspera, havia enviado um ambicioso ofício com uma pauta de 19 projetos prioritários, e um presidente que se vale da manifestação de domingo para resistir ao acordo das emendas parlamentares, o Congresso optou pela plateia.
Este industrial não foi eleitor de Bolsonaro, mas não aposta – nem deseja – a abreviação do seu mandato. Lamenta, porém, que, entre seus pares, ainda prevaleça a ideia de que a afronta de Bolsonaro aos valores da civilização ainda seja naturalizada em nome de um ambiente de bons negócios. Este quesito foi posto em questão pela paralisação da B3 pela segunda vez em uma semana. E o envolvimento empresarial com a manifestação de domingo mostrou que, nessa relação, se alguém está sendo instrumentalizado são os donos do capital. (Valor Econômico – 12/03/2020)