Forças profundas favorecem a reeleição de Trump, além da incompetência dos adversários
É evidente a consternação com que parte muito relevante da imprensa americana constata a sucessão de fatos que sugerem um grande impulso para a reeleição de Donald Trump em novembro. Livre do impeachment, comemorando o mais longo período recente de expansão da economia americana e até aqui sem adversários do Partido Democrata capazes de enfrentá-lo, “não tem mais coleira alguma que segure Trump”, resignou-se o The New York Times.
De fato, as mudanças que Trump já provocou no sistema político americano e, mais ainda, na visão que os americanos têm de si mesmos e seu papel no mundo parecem irreversíveis – se são benéficas para o futuro do país e a ordem internacional é outra questão. Pois essas transformações têm causas muito mais amplas do que o comportamento que se possa considerar desprezível e ilegal de um indivíduo (Trump). Elas têm de ser vistas como parte de uma revolta mundial contra a democracia liberal. O nosso “Zeitgeist” (espírito de uma época) com Twitter.
Por ser Trump um anti-intelectual a ponto do analfabetismo cultural e errático em seus pronunciamentos, a mesma parte relevante da imprensa americana e internacional assume que ele não tem projeto coerente que precise de uma teoria para ser explicado. Mas é óbvio que visões de mundo podem ser “intuitivas” em vez de “ideológicas” ou “filosóficas”, e que estratégias podem ser instintivas em vez de claramente delineadas e sistematizadas (Bolsonaro entraria nessa última categoria).
É provável que Trump nem entenda direito o tipo de forças que representa. Pois não são apenas radicais as mudanças que ele já provocou – como o fim da percepção do papel “excepcional” de seu país no mundo. Elas refletem um padrão que se constata no sucesso em outras regiões do mundo de regimes autoritários pós-Guerra Fria, o de um profundo ressentimento “provinciano” por parte de camadas significativas de eleitores diante do “mundo cosmopolita” (os tais “globalistas”) defendido por elites econômicas, intelectuais e políticas que perderam a conexão com essas forças subterrâneas, mas decisivas.
Um dos “feitos” de Trump, de forte apelo psicológico, é ter convencido nacionalistas americanos (sempre abraçados na “star and stripes”) a abandonar a ideia de que os EUA sejam moralmente superiores. E que seu país possa ser “great again” sem precisar ser um líder mundial, sem ter o que ensinar a outras nações. É uma mudança monumental em relação ao que foi até aqui o papel representado pelos EUA na ordem mundial que instituiu e liderou após a Segunda Guerra.
Para esse interessante paradoxo que Trump transformou em sucesso eleitoral – a visão de que os EUA são “vítimas” da americanização do mundo – a resposta dos democratas é um presente para a campanha do atual presidente. Um autodenominado “socialista” é até aqui um de seus principais candidatos. O chamado “centro” ideológico do Partido Democrata não foi capaz de escalar até agora alguém de forte apelo eleitoral para reconquistar parcelas que, em 2016, abandonaram o partido em pequenos Estados decisivos para a composição do colégio eleitoral (não custa repetir que é indireta a eleição do presidente americano).
Os democratas demonstraram em Iowa, de forte valor simbólico no começo oficial da campanha, assustadora incompetência no uso de tecnologias digitais. Utilizadas com grande eficácia por republicanos, que há mais de década encontraram nas redes sociais uma alternativa ao que identificavam como “bias liberal” da imprensa tradicional. Já usam “geofencing” para abordar grupos específicos de eleitores (católicos, por exemplo) enquanto democratas não conseguem tabular resultados de primárias.
A reeleição de Trump não é inevitável. Isso não existe em política e história. Mas se tornou mais provável. (O Estado de S. Paulo – 06/02/2020)