Sem tributo, educação ficaria sem dinheiro. Ideia é demagogia agressiva
Zerar os impostos sobre combustíveis é uma ideia obviamente lunática. Os motivos do desvario são mais obscuros.
Foi apenas mais um tiro da roleta russa de disparates de Jair Bolsonaro? Ou foi tentativa muito vulgar e manjada, nem por isso ineficaz, de fazer demagogia, de arrumar bodes expiatórios?
Ou seja, o governo lança uma ideia inexequível, de apelo popular, mas que será criticada por qualquer governante equilibrado ou observador razoável dos assuntos públicos. Assim, o povo desavisado ou fanático recebe mais uma mensagem de que “o sistema não deixa o mito trabalhar”. É propaganda e um trabalho de destruição institucional.
Por que o imposto zero é disparate?
Caso o governo federal e os estados deixassem de cobrar impostos sobre combustíveis, perderiam receita equivalente a 1,6% do PIB, uns R$ 115 bilhões, por aí. É a ordem de grandeza, pois não há dados recentes e detalhados da carga tributária. Os estados perderiam 1,2% do PIB.
O que é 1,2% do PIB? Mais ou menos a metade do que estados gastam em educação ou o gasto nacional em ensino médio. Etc.
O governo federal perderia uns R$ 28 bilhões por ano (de PIS/Cofins e Cide). É quase um ano inteiro de Bolsa Família. Há outros problemas fiscais, econômicos e legais de acabar com essa receita de impostos, mas já deve ter dado para entender o tamanho do problema.
“Eu zero o [imposto] federal se eles [governadores] zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito. Tá ok?”, disse Bolsonaro em uma das suas saidinhas do Palácio da Alvorada.
Essa conversa vem desde domingo passado. Até o meio da tarde desta quarta-feira, gente de sites de divulgação bolsonarista e de extrema direita em geral fazia campanha barulhenta na mídia social, em especial na rede do piado.
As tropas de choque digitais tentavam emparedar e enxovalhar governadores enquanto pintavam Bolsonaro como um herói de mãos atadas. Era um esforço coordenado. Não é possível dizer que fosse ofensiva controlada pelos porões digitais do Planalto, mas era propaganda conveniente depois de quase um mês de crises provocadas pelo próprio governo.
Quanto ao ICMS dos combustíveis, trata-se mesmo de um problema. O imposto, cobrado como porcentagem do valor de referência de venda, acaba por amplificar as variações de preço. Houve discussão sobre o assunto no governo de Michel Temer, pouco antes do caminhonaço de 2018.
É possível cobrar um valor fixo de imposto (tantos centavos por litro). De quanto seria? Caso aceitassem a ideia (improvável), os governadores demandariam valor alto o bastante para arrecadar tanto quanto nos tempos de preço de combustível nas alturas. Os preços não cairiam, de qualquer modo. Apenas a variação extra provocada pelo imposto seria menor.
Em vez de “zerar” impostos sobre combustíveis, convém reduzi-los? Não.
Primeiro, porque não há dinheiro. Na média, os estados estão ainda mais quebrados do que o governo federal. O ICMS sobre combustíveis é cerca de 15% da receita estadual, na média.
Segundo, caso houvesse dinheiro, haveria mais o que fazer: obras de infraestrutura física e social, de estrada e corredor de ônibus a hospital.
Terceiro, é ainda mais tolo gastar dinheiro escasso em estímulo do uso de combustível fóssil.
Essa é uma discussão racional, porém, uma raridade no governo. Bolsonaro mais uma vez degradou o debate público com uma mistura de ignorância e demagogia agressiva. (Folha de S. Paulo – 06/02/2020)