Nos Estados Unidos, sempre a primeira referência em vivência democrática, a prestação de contas do governo federal ao Congresso e as intenções para o ano que começa estão em discurso denominado Estado da Nação.
Hollywood (saudades da série The West Wing) já mostrou ao mundo o frenesi que antecede a elaboração da mensagem do chefe do governo ao Legislativo, as discussões sobre os temas polêmicos e o debate de ideias sobre o que deve prevalecer para o registro da história. A mensagem procura o rigor sobre o passado para tornar crível a promessa de futuro.
No Brasil, a mensagem que o presidente da República envia solenemente ao Congresso a cada ano, na abertura dos trabalhos legislativos, já foi chamada de “engana brazilianista”. É um relatório sem compromisso com a realidade. Não serve para pesquisa, seja dos temas, seja dos métodos, seja das intenções da administração. É, apenas, uma extensa formalidade.
A começar pelo portador. Onde já se viu um ministro esvaziado em suas funções enquanto estava de férias, tendo de explicar na volta às pressas se está demitido, levar solenemente ao Congresso a carta de intenções do governo federal? O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, fez este papel e viu aumentar sua necessidade, que já era grande, de justificar presença no governo. Mas continuará, por enquanto, onde sempre esteve: no Planalto há um vácuo que serve às longas frituras.
Deram-lhe o papel de mensageiro, mas poderia ter passado por constrangimento pior. A carta foi lida pela primeira-secretária, deputada Soraya Santos (PL-RJ), que, por duas vezes, fez longa pausa para esperar que o plenário, escolado em não ouvir anualmente a mensagem, prestasse uma mínima atenção.
Por volta do mês de novembro, inicia-se aqui a corrida de assessores dos ministérios para fazer o relatório daquilo que o governo quer fazer constar de sua mensagem como tendo feito e as promessas para o ano em curso. Uma versão administrativa das resoluções de ano-novo que povoam o imaginário do réveillon.
Tal como a função do ministro mensageiro, o documento é inconsistente. O deste ano tem 150 páginas e não chega a ser tão falso quanto os programas de governo de candidatos, a capa, agora em verde mais claro, tem conteúdo.
Mas poderia ser reduzido às linhas em que o presidente Jair Bolsonaro relaciona as prioridades que dependem de votação do Congresso. Todas conhecidas e, para sorte dele, são também as prioridades da Câmara e do Senado. Há, porém, uma mudança importante a destacar nos planos do governo revelados na mensagem. A reforma administrativa, que a equipe econômica gostaria de ver aprovada antes mesmo da tributária, saiu da lista.
O governo explica que ela está embutida naquela prioridade genérica de buscar o equilíbrio fiscal, mas não era com esse disfarce que vinha sendo gestada. Foi suspensa ano passado, por resistência interna, até que o Ministério da Economia a submetesse à discussão dos ministros atingidos. O que não aconteceu até hoje.
Fora isso, às vezes procura-se uma inconsistência em estimativas, às vezes discute-se um projeto que já ruiu, mas não é assunto que passe para o dia seguinte. O compromisso com a realidade, por parte do Congresso na sua relação com a gestão do Executivo, continua a ser LDO (diretrizes orçamentárias), PPA (plano plurianual) e Orçamento da União. O Orçamento é a peça mais importante do Parlamento para a administração ao longo do ano, embora tenha também seus aspectos ficcionais, sobretudo na estimativa de receita. A agenda das reformas o Congresso considera sua, e os presidentes das duas Casas tocam seus planos sem pedir licença.
Para isso começaram a mobilizar suas próprias bases, vez que o presidente não as tem. O resto é propaganda, para durar não mais que 24 horas. (O Estado de S. Paulo – 05/02/2020)