Marco Aurélio Nogueira: A voz dissonante de Risério

Em polêmico novo livro, o antropólogo aponta os limites e contradições da luta identitária e denuncia as polarizações políticas dos nossos tempos

O novo livro do antropólogo baiano Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, veio para desafinar o coro dos contentes. A começar do título, calculado para chamar atenção e provocar. Sem papas na língua, com critério, erudição e domínio do tema, dispara contra a cultura política e teórica pós-moderna, privilegiando em especial os movimentos identitários que, nas últimas décadas, assumiram a dianteira na contestação política e cultural, produzindo, porém, mais ruído e dissonância que hegemonia.

Risério parte do suposto de que a guinada identitária ressignificou a contracultura derivada dos anos 1960 e contribuiu para abalar a ideia de esquerda. Para ele, com a difusão das postulações feministas e racialistas radicais, teria havido um empobrecimento geral da contestação e um apagamento das possibilidades da esquerda democrática. O identitarismo produziu fissuras e divisões justamente onde a unidade democrática mais se mostrava necessária. Fixou mentalidades gregárias fechadas em si, em vez de abertas a interações comunicativas.

Convencido da necessidade de alertar a opinião pública contra os desacertos identitários, Risério não faz concessões. Não se desvia da rota com digressões acadêmicas: seu livro é um ensaio “de intervenção intelectual e combate político frontal”. Comete excessos nessa operação, mas procura justificá-los o tempo todo: não há porque ter tolerância contra quem é intolerante e não admite divergência.

Risério quer denunciar as polarizações do nosso tempo, que estiolam o campo democrático. Sabe que sempre haverá gente divergindo de gente, um lado contra o outro. Seu problema é a polarização que se converte em intolerância e agressão, como ocorre hoje no Brasil, seja nos confrontos alimentados pelo bolsonarismo sectário, seja nas refregas identitárias. Misturando-se confusamente com as rusgas entre esquerda e direita, com a luta política cotidiana, a ênfase na identidade tornou-se combustível adicional para a exasperação verbal, a fragmentação política e o enfraquecimento da democracia.

Postulações identitárias rapidamente se tornam ideologias de mobilização e leitura do mundo, dando musculatura a pregações morais bastante discutíveis, que menosprezam a história fática e ficam a um passo de cair no fanatismo. Negros passam a hostilizar brancos como resposta a uma hostilidade que remontaria aos tempos da escravidão, feministas radicais condenam todos os homens como expressão de um machismo secular. Risério critica os “racialistas neonegros” por insistirem na negritude dos mulatos e não compreenderem que no sistema escravista brasileiro até escravos compravam escravos. Já as neofeministas radicais, que atacam um Ocidente “patriarcal” que não mais existe, fecham os olhos para a opressão sofrida pelas mulheres no mundo islâmico e nas culturas tradicionais africanas.

A batalha identitária nasceu da luta pelo reconhecimento do outro, pela afirmação da “outridade”. Sua vitória progressiva, porém, produziu o contrário, na visão de Risério. Os neo-identitários passaram a negar o outro, recusando legitimidade argumentativa aos que estão fora das agendas de identidade. O exagero irracional na defesa do “lugar de fala”, por exemplo, levaria a que somente negros pudessem falar de problemas dos negros e somente mulheres feministas pudessem abordar questões femininas.

Identitários radicais querem aceitação plena de seus dogmas. Exigem lealdade incondicional e estigmatizam quem foge de suas teses. Consideram-se donos absolutos da verdade, moralmente superiores ao resto dos humanos. Põem-se da perspectiva de um “oprimido” mais imaginário que real, a partir do qual constroem uma ideologia de autovitimização. Polarizam sempre em termos negativos: por mais que se refiram positivamente às causas e pessoas que defendem, a maior parte da energia que consomem volta-se para desmascarar e “desconstruir” adversários. Com isso, perdem-se muitas possibilidades de interação, diálogo e cooperação. O resultado é fácil de ser imaginado: em vez de avanços consistentes em direitos e políticas públicas, tem-se retração e desaceleração.

É tema central do livro. Risério está interessado em dessacralizar os que põem a identidade como questão principal e atuam como “juízes” do que é certo e errado, fechando-se em “tribos” particularistas, setoriais, que problematizam a unidade política e produzem um apartheid ao revés: para defender os diferenciados, criam mais diferença e segregação, bloqueando o diálogo e as interações. Seu objetivo é fazer com que a esquerda saia da complacência e “denuncie o fascismo em suas próprias fileiras”.

O livro abusa do conceito de “fascismo”. Ciente da reação, Risério esclarece: “emprego a expressão em seu sentido corriqueiro de tentativa de exercer controle ditatorial sobre a postura e o discurso dos outros”. É um risco assumido. Ao qualificar a esquerda identitária como “fascista”, Risério cria uma polarização adicional, que incrementa aquilo que deseja combater. Ele também não deixa espaço para que se pense o tema das identidades de modo democrático. Procede como se se tratasse de uma não-questão. Não esclarece suficientemente que sua crítica se dirige a um pedaço da esquerda que deseja alcançar o radicalismo identitário, não as preocupações com a identidade.

A crítica de Risério merece ser levada em conta, excessos retóricos à parte. Nos dias atuais, há mesmo que se recuperar perspectivas mais totalizantes, que incluam mais que excluam, que privilegiem o que é comum a todos ou à maioria. Nichos corporativistas, partidários, religiosos ou identitários travam a vida democrática, sobretudo quando se põem num círculo moral superior e se apresentam como expressão máxima da democracia.

Muitos torcerão o nariz para o livro. Mas Risério faz o que se espera de um bom ensaio político-cultural: força o leitor a pensar, a rever conceitos e explorar novas pistas. (O Estado de S. Paulo – 09/02/2020)

Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp

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