Candidatos ao STF devem dizer o que pensam sobre o motim
O episódio protagonizado por Cid Gomes (PDT-CE) em Sobral na semana passada, quando o senador foi baleado após avançar com uma retroescavadeira na direção de policiais militares amotinados, é prova dos riscos da polarização que insiste em dominar o ambiente político brasileiro. O incidente não acabou em tragédia por pouco, mas deve ser visto como mais um claro sinal do que pode causar a irresponsabilidade de lideranças que consideram cada vez mais natural defender o indefensável como meio de preservar os próprios interesses políticos.
Aliados do presidente Jair Bolsonaro logo ficaram ao lado dos policiais, enquanto partidários de Cid Gomes passaram a responsabilizar o chefe do Executivo e seu grupo político por um suposto processo de “milicianização” das polícias militares país afora. Narrativas que esquecem o passado e não constroem soluções para o presente nem para o futuro. Afinal, praticamente todos os últimos presidentes da República passaram por situações semelhantes.
Equivocadamente, o Congresso acostumou-se a aprovar projetos para anistiar policiais e bombeiros grevistas. Mostra a essas categorias, com isso, que vale, sim, se arriscar a desrespeitar a lei, promover a desordem e o desrespeito à hierarquia.
A ex-presidente Dilma Rousseff, por exemplo, chegou a vetar a anistia a policiais militares. Mas em 2016 viu integrantes da sua própria base ajudando a derrubar o veto, o que beneficiou militares do Amazonas, do Pará, do Acre, de Mato Grosso do Sul, do Maranhão, de Alagoas, do Rio de Janeiro, da Paraíba e do Tocantins. A medida era defendida pelos secretários estaduais de segurança, devido ao risco de se gerar desequilíbrios no comando exercido pelos Estados sobre as instituições militares sujeitas à sua esfera de hierarquia. Mas o argumento foi ignorado pela maioria dos parlamentares, inclusive pelo então deputado Jair Bolsonaro e também por Eduardo Bolsonaro, ambos à época no PSC.
Não seria a primeira vez nem a última que uma proposta desse tipo era analisada pelo Parlamento. O mesmo ocorreu, por exemplo, em 2011 e 2013.
O tema voltou à pauta da Câmara no fim de 2018, com a articulação do então deputado Alberto Fraga (DEM-DF). O ex-parlamentar foi policial militar e hoje é candidatíssimo a ocupar um cargo no ministério de Bolsonaro.
Agora, esse projeto está no Senado. A proposta é anistiar militares do Espírito Santo, do Ceará e de Minas Gerais por atuação em movimentos reivindicatórios ocorridos entre janeiro de 2011 a maio de 2018. Nada impede, contudo, que emendas ampliem a abrangência territorial e temporal dessa iniciativa legislativa. Inclusive beneficiando os atuais amotinados do Ceará.
É verdade que os policiais, uma importante base eleitoral do presidente, passaram a se sentir mais respaldados com a vitória de Jair Bolsonaro na última eleição. No entanto, é preciso considerar a recorrente condescendência do Congresso como outro fator responsável pela insistência de policiais militares de diversos Estados em reeditar, ano após ano, movimentos ilegais de greve.
Esse aspecto ganha ainda mais importância, num contexto em que a influência da chamada bancada da bala é crescente. Na Câmara, a bancada ligada à área de segurança pública cresceu de 35 para 61 deputados nas últimas eleições. Ela também tem nove integrantes no Senado.
Seus integrantes têm argumentos parecidos quando defendem os policiais grevistas e os projetos que tentam anistiá-los. Antes de os policiais infringirem qualquer regra, afirmam, o poder público foi quem desrespeitou a legislação ao atrasar pagamentos, não reajustar salários ou não tomar atitudes para evitar que as condições de trabalho se deteriorassem
Se esses argumentos até podem convergir com o que pensa o presidente, não agradam nada a ala militar do governo.
Para generais, qualquer ato de indisciplina e de desrespeito à hierarquia deve ser punido de forma exemplar. Muitas vezes, dizem esses oficiais de forma reservada, são os integrantes mais novos das tropas que conseguem sustentar essas mobilizações por tanto tempo. Isso devido ao fato de esses membros não terem incorporado totalmente os valores das instituições, sendo alvos mais fáceis de quem tem motivação política para organizar esse tipo de ato.
Além disso, as Forças Armadas haviam se planejado para se concentrar em questões internas, depois de terem executado uma série de operações de garantia da lei e da ordem e a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro. O atual momento seria o ideal para readestrar as tropas e desenvolver os projetos estratégicos de cada Força.
O risco de greves ocorrerem em outros Estados pode tirar os militares dessa rota. Não foi de surpreender, portanto, que a declaração mais assertiva contra o movimento feita pela comitiva federal que desembarcou no Ceará durante o Carnaval saiu da boca do ministro da Defesa, Fernando Azevedo.
Ele estava acompanhado dos ministros da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça. Ambos são cotados para o Supremo Tribunal Federal. Até mesmo por isso seria interessante ter ouvido com detalhes o que os dois pensam sobre a possibilidade de policiais militares fazerem greve.
Nas redes sociais, o terceiro candidato, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge de Oliveira, foi mais objetivo: “Tenho muito orgulho de ser policial militar. Entendo, compreendo e concordo com muitas das reivindicações dos meus irmãos de farda. No entanto, não apoio a paralisação das atividades de policiamento ostensivo, pois é inconstitucional e prejudica nosso bem maior: nossa sociedade”.
Em 2017, o STF precisou reafirmar o óbvio: as forças policiais não podem fazer greve, de acordo com a Constituição. Como nada impede que a Corte possa rever suas decisões futuramente, será importante ter clareza do que pensam todos os aspirantes a ministro do Supremo. O presidente da República, os deputados e os senadores também devem agir com mais responsabilidade, quando voltarem a tratar de um assunto tão determinante para o bem-estar do cidadão. (Valor Econômico – 26/02/2020)
Fernando Exman é chefe da redação