Temer abrigou Moreira sem mexer na biblioteca
O Brasil tem dois ex-presidentes com assento na Academia Brasileira de Letras (ABL): José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Juscelino Kubitschek passou perto da instituição: em 1975, perdeu a eleição para a cadeira nº 1 por dois votos para o goiano Bernardo Élis.
Ao contrário de muitos de seus antecessores que eram leitores apaixonados ou ao menos, avalistas de políticas culturais e de estímulo à leitura, a relação do presidente Jair Bolsonaro com esse universo é de descaso ou desconforto.
Em novembro, passou despercebido que pela primeira vez em 25 anos, o presidente não anunciou a Ordem do Mérito Cultural, a principal condecoração do setor, que prestigia artistas de todos os segmentos: literatura, artes plásticas, teatro, cinema e música. No Dia Nacional da Cultura de 2019, Bolsonaro comandou cerimônia de balanço dos 300 dias de governo.
Na semana passada, o presidente irritou-se com perguntas sobre a reforma da biblioteca do Planalto para abrigar o gabinete da primeira-dama Michelle Bolsonaro. “Estão descendo a lenha que a biblioteca vai diminuir em vez de elogiar a primeira-dama”, reclamou, e “deu uma banana” para os jornalistas.
No mês passado, Bolsonaro criticou os livros didáticos e prometeu que em sua gestão, “virão com a bandeira do Brasil na capa, o hino nacional e um estilo mais suave”. Depois, soltou a frase emblemática: “Os livros hoje em dia, como regra, é [sic] um amontoado de muita coisa escrita”.
Há anos Bolsonaro reitera que seu livro de cabeceira é a “Verdade Sufocada”, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de torturar presos no DOI-Codi. Nunca citou outro título. Seu desprezo pelo universo artístico, especialmente literário, contrasta com a postura de muitos de seus antecessores.
Depois que transmitiu o cargo para o general Costa e Silva, o marechal Castello Branco planejava se dedicar à leitura dos clássicos da literatura universal e a escrever suas memórias, conforme relato de Lira Neto na biografia do primeiro presidente do regime militar.
É singular que Castello tenha passado os seus últimos dias na fazenda da escritora Rachel de Queiroz, no Ceará, de quem era amigo próximo. Mas ele viria a falecer quatro meses após deixar o cargo, vítima de acidente aéreo. Entre os destroços do bimotor, próximo ao seu corpo, encontraram um exemplar da primeira edição de “Iracema”, autografado pelo próprio José Alencar. Era um presente de Rachel a um terceiro, mas ela receava que Castello o surrupiasse para incorporá-lo à sua biblioteca.
Juscelino Kubitschek prezava especialmente a companhia de escritores. Declarava que nunca recebeu denúncias de corrupção envolvendo sua equipe, que se não estava trabalhando, estava em processo de criação, sem tempo para atos de improbidade.
O ministro da Casa Civil de JK era o escritor e crítico literário Álvaro Lins; o secretário de Imprensa era o escritor mineiro Autran Dourado; e seu conselheiro pessoal e redator de discursos era o poeta Augusto Frederico Schmidt. Subchefe de gabinete, o escritor Cyro dos Anjos redigiu uma das mensagens anuais ao Congresso a quatro mãos com o antropólogo Darcy Ribeiro.
Meses antes, no exercício do mandato de governador de Minas Gerais, Juscelino esteve com Getúlio Vargas às vésperas do gesto fatal. Getúlio foi a Belo Horizonte para a inauguração de uma usina e aceitou o convite para pernoitar no Palácio das Mangabeiras. Insone, tomado pela angústia, foi flagrado por Juscelino com um exemplar de Eça de Queirós nas mãos. “Nunca durmo sem antes ler um pouco”, justificou, em passagem que consta do último volume da trilogia “Getúlio”. Doze dias depois, daria cabo da própria vida.
José Sarney foi jornalista, é poeta e escritor, autor, entre outros títulos, de dois romances: “Saraminda” e “O Dono do Mar”. Sociólogo e professor universitário, FHC publicou dezenas de obras nas áreas de sociologia e ciência política. Nos últimos anos, assinou quatro volumes de seus diários na Presidência.
Dilma Rousseff e Michel Temer são leitores ávidos e frequentes. Sarney convenceu Temer a recriar o Ministério da Cultura e foi autor da Lei do Livro, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que regulamentou o setor literário e instituiu programas de fomento à leitura.
Na abertura da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2004, Lula fez a infeliz comparação de um livro a uma esteira de ginástica: “Dá preguiça começar, mas depois de vinte minutos a gente vê como é importante.”
Com o tempo, Lula se converteria à leitura. Divulga-se hoje, equivocadamente, que ele começou a ler na prisão em Curitiba. Na verdade, ele se tornou um leitor frequente em 2011, quando se submeteu ao tratamento do câncer na laringe. Na ocasião, leu as biografias de Getúlio, João Goulart, Franklin Roosevelt, Nelson Mandela.
Num país com problemas candentes como desemprego e profunda desigualdade social, desmontar a biblioteca do palácio parece uma filigrana, mas é um aceno ruim para um governo que almeja entrar para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A instituição responde pelo Pisa, avaliação internacional que testa estudantes nas áreas de leitura, matemática e ciências. Em leitura, o Brasil ficou no 58º lugar no ranking de 80 países na última prova. Um relatório do Banco Mundial estimou que, nesse ritmo, o Brasil vai demorar 260 anos para atingir o nível de países desenvolvidos em leitura.
Quando Michel Temer criou a Secretaria-Geral da Presidência para acomodar Moreira Franco no Planalto, desalojou a Subsecretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, que passou a funcionar no prédio da Vice-Presidência.
Com o deslocamento do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para o Ministério da Economia, há gabinetes vazios no Planalto que poderiam acomodar a primeira-dama e preservar o espaço de leitura, memória e pesquisa.
O Brasil pode ser admitido na OCDE mesmo com mau desempenho no Pisa e uma massa de analfabetos funcionais. Mas será algo como chegar a uma festa sofisticada, com trajes rotos e sapatos sujos, pela porta dos fundos. (Valor Econômico – 18/02/2020)