O embate político principal já não é entre direita e esquerda. O embate é religioso. É busca do poder como meio de impor à sociedade os valores desses grupos minoritários e conservadores
Não passa semana sem que jornais e revistas divulguem dados e análises que mostram o declínio numérico dos católicos em relação ao conjunto das outras religiões. Ou, mais especificamente, em relação aos evangélicos. Agora mesmo, uma nova análise prevê que em 2035 o catolicismo deixará de ser a religião da maioria da população brasileira. Os evangélicos serão maioria. Essa redução do tema a mera demografia da fé esvazia as religiões do que lhes é próprio e anula seu tema essencial – que são o sagrado e os ritos por meio dos quais se expressa.
Enquanto as análises, nessa perspectiva, descosturam as religiões, o ecumenismo junta o catolicismo e diferentes religiões, protestantes e ortodoxas, numa outra unidade, de uma nova religiosidade. De oposição e de revisão crítica das crenças que sucumbiram à mentalidade de supermercado e ao afã de poder.
Não se diz, mas a maioria evangélica dessa reflexão é apenas nominal, já que dividida em diferentes igrejas, que competem entre si pela alma dos pecadores. E até pela natureza dos pecados que congregam os respectivos membros. Há pecados de ricos e pecados de pobres, difere a fé de uns e outros e, portanto, a respectiva religiosidade.
Não é estranho, pois, que o simbolismo das vestes cerimoniais do celebrante anteponha um bispo neopentecostal revestido de paramentos judaicos a um missionário neopentecostal de outra igreja, que no púlpito não usa o quipá, mas o chapéu de vaqueiro dos filmes de faroeste. A principal questão nessas mudanças na demografia religiosa é a de saber qual é o Deus que delas nasce.
O catolicismo continuará a ser a religião da maioria dos brasileiros, mesmo depois de 2035. É que, se o catolicismo é tratado como uma religião, cada uma das igrejas evangélicas concorrentes é também única. Nesse sentido, é cada uma delas muito minoritária. Sem contar que as igrejas neopentecostais nem mesmo podem ser reduzidas às pentecostais, bem diferentes. O artifício meramente estatístico de agrupá-las, no censo, na categoria de evangélicas, não faz delas de fato uma unidade religiosa, uma igreja ou uma religião única. Há entre elas grandes diferenças de concepção do cristianismo.
O que os analistas não têm mencionado é que o catolicismo, apesar de suas diferenças internas, mantém sua unidade centrada na autoridade simbólica e doutrinária do papa. Já os evangélicos se fragmentam continuamente. O que resulta na multiplicação das pequenas igrejas neopentecostais que se instalam no pequeno espaço do que foi antes um botequim ou uma farmácia.
Essas pequenas igrejas, organizadas por pastores simples, representam uma disputa de clientela com as grandes igrejas neopentecostais. Estas tendem a expressar os anseios de ascensão social da classe média que vem se evadindo da Igreja Católica, mas também de algumas igrejas protestantes tradicionais e mesmo de outras igrejas neopentecostais e pentecostais.
As pequenas igrejas expressam os sentimentos comunitários e a religiosidade dos simples, os que carecem de vida e vida em abundância. Os que aceitam que a prosperidade na teologia da ascensão social é a recompensa dos que professam a fé mediada pelo cálculo.
As religiões ocupam um espaço cada vez maior na realidade social, não só aqui. As guerras e os riscos de guerra, na atualidade, estão dominados pela temática e pela motivação religiosa. No Brasil, o embate político principal já não é entre direita e esquerda, apesar de tudo que se diz. O embate é religioso. É busca do poder como meio de impor ao conjunto da sociedade os valores desses grupos culturalmente minoritários, conservadores e frequentemente intolerantes. Está surgindo aqui uma religião do poder e por meio dela se firma o poder da religião. Nessa metamorfose, a democracia sucumbe, não o catolicismo.
Para o catolicismo e para as igrejas cristãs tradicionais, como se vê nos esforços e nos valores religiosos do movimento ecumênico, o que está em jogo não é a disputa entre as religiões. O que está em disputa é a vitalidade e o sentido do sagrado. Está em disputa, também, a religião contra a coisificação dos seres humanos na cultura da pós-modernidade.
Várias das religiões que estão se disseminando entre nós expressam o homogenismo materialista do pensamento único, o que torna cada vez mais difícil ser crítico e autodefensivo em relação à crescente incapacidade de muitos de ver a decisiva diferença entre Deus e poder. Entre as igrejas da caixa da esmola e as igrejas da caixa registradora.
Na nova unidade dos cristãos, a polarização não é entre católicos e evangélicos, mas entre fé e poder. Um retorno ao cristianismo da insurgência contra os vendilhões do templo e a desumanização do homem. (Valor Econômico – 24/01/2020)
José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos ” (Criarte) .