No Brasil, todos defendem distribuição de renda, mas dependem da sua concentração. É nossa droga: ela nos mata, mas vivemos com ela. Nascemos concentrando a terra em capitanias e nunca fizemos a reforma agrária. O latifúndio é um vício e uma característica nacional.
Em um país com população pobre, nossa industrialização é baseada em produtos para os ricos e as classes médias. O automóvel é um exemplo. Raros podiam comprar esse produto e, por isso, foi necessário concentrar renda, usando uma arquitetura baseada na inflação. Se a renda nacional fosse bem distribuída, não haveria demanda para o perfil de bens industriais que nossa economia escolheu produzir.
O debate entre economistas que defendiam distribuir para crescer e os que defendiam crescer para depois distribuir foi vencido por esses últimos. Tanto esquerda quanto direita defenderam a inflação que concentra renda. Os economistas de esquerda ou de direita defenderam medidas desenvolvimentistas que concentravam renda, especialmente pela inflação, mas também priorizando estradas para carros, infraestrutura para a economia voltada para os ricos, desprezando saneamento e escola para os pobres.
Quando a demanda dos poucos ricos se esgotou, criou-se a dinâmica pela substituição de carros considerados obsoletos pela simples razão de terem sido fabricados no ano anterior. Quando os carros ficaram sem compradores, concentraram a renda no sistema financeiro, emprestando dinheiro e endividando a classe média baixa para que comprasse carros.
O que parecia ser distribuição de carros era concentração de renda, tirada do consumo de bens essenciais para gerar dupla inadimplência: dentro da família, por suas necessidades básicas sacrificadas, e entre a família e o sistema financeiro pela necessidade de pagar os empréstimos tomados. Dificilmente, a população brasileira aceitaria imposto sobre automóveis ou combustíveis para financiar o transporte público.
Passou-se a raciocinar que era preciso criar ricos, para dar emprego aos pobres. Concentrar renda, para empregar os que não tinham renda. Aos poucos, as medidas distributivas foram relegadas em benefício do desenvolvimento imediato concentrador.
Até mesmo na educação, o Brasil inteiro, não só os políticos, prefere investir entre os poucos milhões de universitários do que para os 12 milhões de analfabetos plenos, os 70 milhões de analfabetos funcionais, ou os 50 milhões de crianças em idade para educação de base. Há, no Brasil, um sentimento de que a boa educação é um privilégio de poucos, o maldito vício não permite ao Brasil acreditar que os filhos dos pobres têm direito e competência para estudarem na mesma escola dos filhos dos ricos
O vício brasileiro é tão forte que a loteria é vista como distribuidora de renda, apesar de que semanalmente transfere pequenas rendas de milhões de pessoas para concentrá-las nos poucos vencedores.
Nosso vício pela concentração é tão grande que pessoas não medem sua renda pelo poder de compra, mas pelo número de salários mínimos que recebem. Ainda que a renda suba, consideram como perda o ganho que tiveram em relação a um número menor de salários mínimos. Os aposentados não se contentam com a recuperação do poder de compra da aposentadoria, querem reajustes que mantenham o valor em número de salários mínimos. Não defendem, portanto, distribuição de renda.
É comum ver conservadores criticando o fato de que o salário mínimo sobe mais que os salários maiores, diminuindo a brecha entre os grandes e pequenos salários. Mas não é apenas entre conservadores, os sindicatos de trabalhadores ligados a partidos de esquerda criticam quando seus servidores de nível superior perdem em comparação com salários dos níveis inferiores.
No imaginário brasileiro, é preciso elevar as rendas inferiores sem qualquer sacrifício nas rendas superiores. Portanto, distribuir sem distribuir, desconcentrar sem tocar na concentração. Como um dependente da droga que deseja se livrar dela, mas sem perder o vício nem a dependência.
O mais sintomático é que a única forma de ampliar a renda de todos e criar um mecanismo de distribuição seria pela implantação de um sistema educacional de base com qualidade igual para todos: pobres e ricos nas mesmas escolas. Mas o maldito vício da concentração não permite surgir um sentimento que defenda esse propósito. Nossa população não acredita que isso seja possível. O maldito vício domina a lógica e a vontade. (Correio Braziliense – 14/01/2020)
Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)