Fernando Abrucio: A reforma mais urgente

O Brasil precisa fazer uma série de reformas legais para resolver seus principais problemas e alcançar um novo nível de desenvolvimento. Assuntos não faltam neste campo, e muitos deles são considerados prioritários, como a reforma tributária, que pode ao mesmo tempo aumentar a competitividade do país e reduzir desigualdades. Mas qual seria o tema mais urgente em 2020, isto é, algo que se não for aprovado neste ano terá mais consequências negativas? A resposta talvez não seja a esperada pela maioria dos leitores, porém, os dados são eloquentes: a aprovação de um novo Fundeb, fonte que regula o financiamento de toda a educação básica brasileira, deveria encabeçar a pauta legislativa.

Não se trata aqui de escolher o tópico mais importante entre os vários que dependem de PECs ou novas legislações. Na seleção do que é mais importante para a nação, alguns escolheriam a reforma administrativa, outros, a autonomia do Banco Central, e provavelmente a maioria optaria pela mudança tributária. Contudo, mesmo que todos esses pontos sejam fundamentais, a sua não aprovação imediata não causaria um enorme transtorno aos cidadãos.

Neste sentido, a escolha do Fundeb vincula-se ao impacto imediato de sua possível extinção, que acontecerá em 2021, caso não seja aprovada sua prorrogação. O fim desse fundo educacional geraria uma situação de calamidade pública em boa parte do país.

Segundo os dados da Consultoria de Orçamento e Finanças da Câmara dos Deputados, um hipotético fim do Fundeb levaria à redução de cerca de 15% da capacidade de investimento em educação em cerca de três mil municípios brasileiros, onde estudam 20 milhões de alunos, oriundos geralmente dos estratos mais pobres da população. Nestes lugares, faltarão recursos para pagar os professores que lecionam nas escolas. Imaginem como ficariam essas cidades e seus cidadãos. Seria um tipo de “Mad Max” da ignorância que se instalaria nestes territórios.

O impacto maior ocorreria nos municípios de nível socioeconômico mais baixo. Nestes, o valor total gasto com alunos cairia para a metade dos valores atuais – de R$ 4,3 mil por ano para R$ 2,1 mil. Mas as capitais mais ricas também sofreriam com o término do Fundeb: as redes de ensino das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro perderiam, somadas, R$ 4 bilhões por ano.

Em resumo, a não aprovação de um novo Fundeb geraria um caos social, com impactos imediatos para alunos, professores e famílias, mas, principalmente, haveria efeitos de longo prazo, pois a perda de “um ano” de educação não é facilmente recuperada pelas pessoas atingidas e pelo país. Precisaríamos de um bom tempo para nos recuperarmos desse verdadeiro crime de lesa-pátria, para usar a linguagem do governante atual.

O Congresso Nacional tem se mobilizado para evitar essa tragédia educacional. Em particular, a Câmara dos Deputados realizou um enorme trabalho no ano passado em comissão especial, cuja relatoria da PEC ficou a cargo da deputada Dorinha Rezende, que tem grande experiência em políticas educacionais. Foram feitas 50 audiências públicas, ouvindo especialistas, atores da sociedade civil e dos três níveis de governo. O projeto ainda pode ser aprimorado, mas surgiu um perigoso obstáculo no meio do caminho: o MEC, na figura de seu ministro, propôs começar do zero o processo, a partir de uma PEC que seria elaborada pelo Executivo federal. As chances dessa ação dificultar o tramite legislativo são enormes, especialmente por conta de três fatores.

Em primeiro lugar, em virtude de 2020 ser um ano eleitoral. O pleito municipal mobiliza diretamente um quinto dos deputados, e afeta os demais fortemente, porque os vencedores locais serão importantes peças da próxima eleição à Câmara Federal. Em menor medida, o Senado também é atingido e, no fundo, o Congresso fica quase parado de maio a outubro. Isso reduz o tempo que se tem para aprovar medidas legislativas.

A agenda congressual, ademais, está abarrotada de assuntos e, para piorar, sofre com a descoordenação governamental. A equipe econômica mandou três PECs ao Congresso no fim do ano, todas de grande complexidade política. O presidente Bolsonaro não se cansa de mandar, a todo momento, Medidas Provisórias sobre diversos assuntos. Há ainda uma enorme discussão sobre a reforma tributária gerando conflito entre os presidentes das duas Casas. Com tanta coisa sendo discutida, e em meio à eleição municipal, produz-se mais um fator de atraso de qualquer medida legislativa, incluindo aí o Fundeb.

A questão mais problemática, no entanto, está na falta de articulação política do governo Bolsonaro no Congresso Nacional. Temos um presidente que coleciona derrotas legislativas. E se não fosse a mobilização de Rodrigo Maia (principalmente) e Davi Alcolumbre, a reforma da Previdência, que é a grande vitória política governista de 2019, nunca teria sido feita.

Esses maus resultados legislativos advêm de dois aspectos. Primeiro, por conta do modelo de governança proposto, em que se preferiu não montar uma coalizão partidária para se ter maioria parlamentar. O bolsonarismo diz que isso é para evitar corrupção, mas se esquece que diversos países democráticos e desenvolvidos só alcançam a governabilidade porque montam coalizões – como a Alemanha, Portugal e Espanha. Além dessa visão estreita da política, muitos ministros do governo Bolsonaro atuam com uma enorme empáfia, quando não de forma autoritária, em relação ao Congresso Nacional.

O ministro Weintraub é um dos que mais segue essa linha política desastrosa. Logo, quando ele coloca que vai começar do zero o debate do Fundeb, em pleno ano de eleições municipais, com a pauta congressual abarrotada, num governo com baixa capacidade de coordenação política e num processo comandado por alguém que regularmente entra em atrito com os parlamentares, a preocupação sobre a sorte da educação brasileira eleva-se à enésima potência.

O comando do MEC precisa entender que não haverá reforma do Fundeb contra os parlamentares, os governadores, prefeitos e organizações da sociedade civil. Poderá, sim, haver confusão para atrapalhar o processo legislativo, de modo que sua resolução fique para os dois últimos meses do ano, e assim o Executivo aprovaria alguma proposta que tenha menos impacto para o caixa da União.

Mas para montar esta estratégia não é necessário o ministro da educação. Basta chamar o titular do Ministério da Economia.

Mesmo esta estratégia diversionista pode ser um tiro no pé do MEC, uma vez que ela certamente enfurecerá o Congresso – especialmente a Câmara -, os Estados e os municípios, além de deixar na sociedade a impressão de que o ministro não está muito preocupado em melhorar a educação brasileira. Se o jogo for o do “dividir para aprovar menos recursos”, será a chance de os partidos mais ao centro fazerem mais uma aliança com a esquerda para aprovarem outro projeto, e colocarem na conta do presidente Bolsonaro a má vontade com a política educacional.

Vale lembrar que o gasto dos países da OCDE, na média, é em torno de duas vezes e meia maior do que a despesa por aluno feita no ensino básico brasileiro. Além disso, há uma enorme desigualdade na distribuição dos recursos entre os níveis de governo, com diversos governos locais e estaduais recebendo bem menos que o necessário. Desse modo, existe um espaço necessário para aumentar a contribuição da União num novo Fundeb.

O governo federal pode reclamar que não é possível aumentar a contribuição da União para 40% do Fundo e que é necessário criar critérios de desempenho para distribuição dos recursos. Eis aí uma ótima discussão, para a qual é necessário haver um governo capaz de ouvir, aprender, dialogar e negociar. Pode-se, primeiramente, chegar a um valor diferente de participação federal em comparação ao proposto pela Câmara, mas é preciso sinalizar para uma elevação paulatina de gastos per capita similar aos países da OCDE.

Também é interessante e factível estabelecer novos requisitos distributivos no Fundeb, entre os quais, além de medidas vinculadas a resultados educacionais, o uso de parâmetros vinculados à redução da desigualdade federativa e o incentivo à adoção de certas práticas bem-sucedidas em política educacional, como foi feito com o PAB no SUS, que dá mais dinheiro para quem adota determinados processos de gestão. No caso da educação, poderia se dar mais dinheiro do Fundeb, por exemplo, para os municípios que atuassem conjuntamente por arranjos intermunicipais e aos Estados que mais investissem na formação e desenvolvimento dos professores.

Essa combinação de critérios distributivos foi feita pelo Ceará, que repassa recursos estaduais buscando conciliar equidade e desempenho, num modelo alicerçado no apoio efetivo do governo estadual aos municípios, dando-lhes as condições necessárias de gestão educacional. Se o ministro Weintraub quiser seguir o modelo cearense, fica uma dica: a governança educacional do Ceará é baseada no dialogo e participação dos vários atores, e não numa proposta gerencial que vem de cima para baixo. É preciso refazer o Fundeb de maneira participativa, dando-lhe a legitimidade necessária para funcionar por mais de um governo. Afinal, mais do que xingar o passado, o bom estadista vislumbra o futuro. (Valor Econômico – 17/01/2020)

Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP

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