Burocracia gera corrupção, mas a ausência de burocracia também gera corrupção
De um lado, estão os liberais exaltados do Ministério da Economia, sempre distraídos e descompromissados da política. De outro, um grupo de ministros, de diferentes áreas e formação, que têm em comum o fato de não aceitarem, sem conhecimento prévio, mudanças radicais que afetem a própria existência de sua função. O projeto de reforma do Estado foi a primeira vítima do teste de estresse. Com seu curso suspenso pelo presidente Jair Bolsonaro, a razão, mencionada à época, foi o temor de que esta reforma pudesse provocar a eclosão de manifestações de rua, a começar dos por ela atingidos e terminar ninguém saberia dizer onde.
Isolados e influentes, dois grupos, com argumentos e propostas divergentes, já produziram um efeito essencial no governo Bolsonaro: os princípios da doutrina liberal perderam o papel de denominador comum e estão em processo de revisão, sobretudo para incorporar nuances que desafiam a imaginação do ministro Paulo Guedes.
Esse temor esteve mesmo presente lá atrás, quando Lula foi solto e clamou por rebeliões contra o governo, exortação que caiu como uma bomba no deserto. Diante da esterilidade, o governo, então, engavetou esta preocupação e acabou deixando escapar sua real motivação.
As razões são fortes, de princípios, e se fizeram notar só agora devido à profundeza da reforma do Estado. Ministros que nunca contestaram o liberalismo mas guardam uma visão diferente sobre a estrutura e o papel do Estado, questionaram a forma superficial como o assunto foi tratado no posto Ipiranga. A proposta de emenda constitucional foi elaborada por um pequeno grupo do setor de desburocratização, liderado por Paulo Uebel, todos especialistas nos meandros da iniciativa privada. Tomaram decisões drásticas sobre função, papel, carreiras, instituições e pessoas da esfera pública sem discutir suas ideias com os atingidos pela transformação. Setores que, por sinal, sofreriam o impacto paralisante pois, aí sim, a reação prevista seria dura e abrangente.
Já se desconfiava que boa coisa não estava embrulhada naquele pacote, entregue no Palácio do Planalto, numa tarde chuvosa, acompanhado de um aviso, seco: o presidente tem que assinar e enviar no dia seguinte de manhã, com urgência, ao Congresso.
Foram as questões denominadas técnicas que, mesmo na pressa, chamaram a atenção de quem não participara da elaboração do texto.
O grupo a favor de mais discussão interna considerou que a reforma fragilizava o Estado em lugar de fortalecê-lo. Uma vez fragilizado, o Estado ficaria vulnerável a grupos políticos e econômicos que se revezassem no poder. O exemplo que se destaca nos equívocos dos autores é a definição das carreiras de Estado, sempre elas.
Deixaram fora do conceito atividades consideradas cruciais, como as de Polícia, as da Receita e da Advocacia da União. Nada é explícito mas, da forma como são anunciados os critérios, estas carreiras não se enquadrariam jamais.
Alguns ministros passaram a ver a um passo da privatização as atividades de regulação de toda a arrecadação do País, do orçamento, da advocacia pública, das licitações, das ações de improbidade, da função das Forças Armadas, da diplomacia.
Subjetividade seria o fio condutor da administração pública. A cada quatro anos, o Brasil daria uma volta sobre si mesmo e poderia ser desfeito, pelo novo governo, tudo o que tivesse sido feito nos quatro anos anteriores.
A burocracia gera corrupção, mas a ausência de burocracia também gera corrupção, foi um dos argumentos que convenceram o presidente. A nova proposta terá que harmonizar os princípios da eficiência, da moralidade, da legalidade, e ser discutida por todos. O que não dá para fazer nesses últimos 30 dias do ano. Portanto, a reforma do Estado já ficou para 2020. (O Estado de S. Paulo – 04/12/2019)