Chega a hora dos balanços, reflexões, retrospectivas de um ano em que ouvimos que 1964 não foi golpe, um novo AI-5 seria bem-vindo para conter protestos, o nazismo era de esquerda, descendentes de escravos deveriam agradecer seus ancestrais por terem deixado a África, ONGs atearam fogo na Amazônia por doações.
A normalização do absurdo foi uma marca de 2019, mas deixemos controvérsias e manipulações de lado para destacar fatos importantes para a economia brasileira – apontando seus desdobramentos. Eis aqui um ensaio, pessoal e subjetivo, para resumir cinco deles. Não estão em ordem de importância e podem facilmente ser substituídos por outros temas ou episódios. É nada mais do que isso: um ensaio, uma tentativa.
1) Previdência: a necessidade de reforma das aposentadorias e pensões estava madura na sociedade quando o governo começou, mas Jair Bolsonaro realmente conseguiu aprová-la sem (muito) toma-lá- dá-cá nas negociações com o Congresso. Ponto para ele. Isso lhe permitiu sustentar o discurso de “nova política” junto ao eleitorado, mas teve reflexos danosos. O presidente imaginou que tinha cacife para aprovar outras pautas sem uma base aliada. É bater a cabeça contra a parede. Paulo Guedes achou que a reforma tributária estava no bolso e poderia até propor uma “nova CPMF”. Só tumultuou o debate.
Demonstrou-se ingênuo o argumento de que a aprovação da reforma traria uma chuva de investimentos. Mas sua rejeição – ou novo atraso – teria jogado o país em um precipício fiscal. O saldo é positivo, mas a exclusão de Estados e municípios ainda vai custar caro aos entes federativos. Quanto mais perto da eleição de 2020, menores as chances de a Câmara votar uma PEC paralela e Assembleias Legislativas fazerem reformas em seus Estados.
2) Leilões de março: as concessões de 12 aeroportos terminaram com ágio de 4.700% e a vitória de operadoras com prestígio. A Rumo pagou o dobro do valor mínimo de outorga pela Ferrovia Norte-Sul e surpreendeu todos que viam o certame feito sob medida para a Vale. Foi o passaporte do ministro Tarcísio Freitas, um quase desconhecido fora da área de infraestrutura, para o estrelato. Ele encaminhou outros bons projetos, decretos sobre relicitação e arbitragem, entregou a BR-163 asfaltada.
Tarcísio virou peça central na engrenagem do governo, xodó do presidente e é sempre cotado para voos mais altos. Foge de intrigas políticas e do jogo sujo nas redes sociais. As guerrilhas bolsonaristas implicaram com ele – que escândalo! – por ter se reunido em Nova York, durante “road show” para atrair investidores estrangeiros, com representantes do Soros Investment Fund, do bilionário George Soros, alvo preferencial de olavistas. “O programa de concessões segue uma linha estritamente técnica e precisamos protegê-lo de agendas de cunho político”, tuitou Tarcísio, em resposta. No atual ambiente de radicalização, não é pouca coisa.
3) Acordo União Europeia- Mercosul: o anúncio de conclusão das negociações de livre-comércio deu uma injeção de ânimo no combalido bloco sul-americano. Até agora, o Mercosul tinha só três acordos fora da vizinhança: com Israel, Egito e Palestina. Irrelevantes.
O sucesso do acordo é uma construção coletiva que passa pelo segundo governo Dilma – curto, porém mais pragmático em relação à abertura comercial do que os 12 anos anteriores de gestões petistas. Avança bastante sob Michel Temer. Mas a “última milha” das negociações, como se diz no jargão diplomático, é sempre complicada e por isso o governo Bolsonaro tem méritos.
O Mercosul se cercou de cuidados, como a possibilidade de salvaguardas em caso de disparada das importações, mas restam algumas desconfianças – como cláusulas de propriedade intelectual e interpretações antagônicas em torno do princípio de precaução na agricultura. De toda forma, abre-se o caminho para novos acordos porque finalmente se definiu jurisprudência sobre até onde se pode chegar em temas sensíveis, como tarifas para bens industriais. Não à toa, um tratado com o EFTA – Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein – foi anunciado na sequência. Acordos com Canadá e com Cingapura são boas apostas para o ano que vem.
Ponto negativo? O Mercosul, que vinha ganhando tração, agora entra em compasso de espera pelo desalinhamento entre Bolsonaro e Alberto Fernández. O auge do mal-estar talvez esteja ficando para trás, mas a Argentina não deve topar redução unilateral da Tarifa Externa Comum e bastará uma faísca para incendiar as relações.
4) EUA x China: tréguas comerciais rendem manchetes e aliviam a tensão no curto prazo, mas têm pouca efetividade numa guerra que, no fundo, no fundo, é tecnológica. A corrida do 5G pode definir o vencedor do século XXI.
A postura óbvia, para o Brasil, era manter equidistância e extrair os benefícios possíveis de cada lado. Bolsonaro e auxiliares capricharam nas indelicadezas com a China. Buscaram forçar amizade com Donald Trump. De início, a proximidade com a Casa Branca até rendeu frutos, como o apoio para entrar na OCDE, o status de aliado extra-Otan e o acordo de salvaguardas tecnológicas, que é essencial para viabilizar a Base de Alcântara.
E como é que se chega ao fim do ano? Dos Estados Unidos tivemos: veto à carne in natura mantido, apoio na OCDE jogado para mais adiante, tarifas ao aço e ao alumínio sem aviso prévio, pressão em torno do 5G. E o que veio da China? Abertura para o melão do Rio Grande do Norte, habilitação para a carne de 25 frigoríficos, petroleiras chinesas no leilão do pré-sal, CCCC e CR20 na ponte Salvador-Itaparica.
5) Ambiente: maior desmatamento na Amazônia em dez anos, queda de 25% nos autos de infração emitidos pelo Ibama, negacionismo climático, discurso irresponsável contra a “indústria da multa” dando a senha para crimes ambientais.
Nas últimas três décadas, o Brasil foi visto como um sócio- chave para o desenvolvimento sustentável. O protagonismo na Eco-92, na Rio+20 e no Acordo de Paris ilustra isso. Agora nos enxergam como parte do problema, não da solução.
A COP-26 ocorrerá em 2020 no mesmo mês de novembro em que se costumam divulgar os índices de desmatamento. Novo fiasco brasileiro, somado a mais um ano de queimadas nas florestas, pode ensejar boicotes e, no limite, comprometer a ratificação do acordo Mercosul- UE no Parlamento Europeu. (Valor Econômico – 18/12/2019)